Diga-se o que se quiser dizer, mas indianos sabem como contar uma história. A esse propósito, a Índia tem um dom verdadeiramente invejável quando se trata de narrar no cinema seus feitos, e em sendo possível temperar a história com fantasia, sem quase nenhum impedimento de ordem lógica, tanto melhor. De tão plural, o cinema hindu foi se desdobrando em várias escolas e em muitas outras ramificações, cada uma trazendo na fachada as qualidades com que pretendia ser reconhecida. De Tollywood, a indústria cinematográfica baseada em Bengala, onde se fala o télugo, uma variação do idioma oficial, saiu a última boa-nova da prolífica safra de filmes indianos. Em “RRR” (2022), o diretor hindu S.S. Rajamouli apresenta sua versão de como teria sido a resposta algo tardia à subjugação britânica, até 15 de agosto de 1947. A ficção de “RRR” tem suas nuances de realidade, ainda que o caráter especulativo sobressaia. É como se Rajamouli estivesse dizendo como gostaria que o público enxergasse seu país e sua gente, por mais que se saiba que o processo de libertação da Índia seja todo pontuado por contradições históricas, a exemplo de certa dívida para com o colonizador, manifestada na insistência em se continuar praticando seu idioma — que misturado aos tantos dialetos tribais torna-se outra coisa, e esse fenômeno também não deixa de ser prova de resistência cultural —, num jeito meio aristocrático de ser e, o mais importante, na maneira como se enxerga no mundo, mormente em se estabelecendo um paralelo com outros países da Ásia. A Índia, quem diria, transformou-se num grande império, em que se reconhecem com nitidez alguma propensão a tragar territórios adjacentes à deriva. A disputa com o Paquistão pela hegemonia da Caxemira, ao norte, denota com algum grau de precisão o destemor do espírito indiano.
“RRR”, um retroacrônimo para “Rise, Roar, Revolt” (“crescer, rugir, revoltar-se”, em tradução literal), toma a história da Índia pré-independência no início do século 20 e a transfere para dois personagens, dois insurgentes já sem muita paciência para viver numa colônia, paralisada por limitações econômicas, políticas, geográficas, topográficas, sociais. Estrelado por dois dos maiores atores de Tollywood, o filme de Rajamouli, uma verdadeira odisseia de mais de três horas, é um dos primeiros trabalhos da temporada a vencer os impedimentos físicos nascidos da pandemia de covid-19 e ser lançado diretamente nos cinemas da Índia, chegando a espectadores do restante do mundo graças a plataformas de streaming como a Netflix. Ram Charan e N.T. Rama Rao Jr., o NTR Jr., dão vida à dupla de protagonistas de “RRR”, cada qual imbuído de uma função específica no roteiro de Rajamouli e outros três colaboradores. O carisma de Charan e NTR Jr., somado a elementos já recorrentes em longas indianos, como a fotografia grandiloquente, que aqui coube a K.K. Senthil Kumar, a onipresente computação gráfica e os famigerados e polêmicos números musicais — que provocam um riso nervoso em plateias estrangeiras, dada a alegria algo histérica de seus performers —, eleva o enredo ao status, se não de obra de arte, de um momento particularmente feliz na trajetória do cinema da Índia, que se aproveita da cumplicidade de quem assiste, bem como da sofreguidão por desfrutar de um instante de prazer nas salas escuras, no caso do publico nacional, para oferecer um espetáculo digno da magnitude por trás de um país oficialmente autônomo há apenas três quartos de século, mas que mostra que sabe muito bem o que fazer com seu passado.
Filme: RRR
Direção: S. S. Rajamouli
Ano: 2022
Gêneros: Ação/Drama
Nota: 9/10