Entre 3 e 4 de outubro de 1993, o Exército dos Estados Unidos invadiram Mogadíscio, capital da Somália, pensando se tratar de uma empreitada fácil acabar com a miséria imposta ao povo por um governo autocrático e corrupto, que se arrastava há 33 anos, desde a independência do Reino Unido em 1° de julho de 1960, no opróbrio da fome severa, capaz de minar as energias de um indivíduo a ponto de matá-lo. Resultado: em menos de 24 horas, dezoito soldados americanos foram mortos, outros setenta sofreram ferimentos graves e a missão humanitária enviada pelo então presidente, o democrata Bill Clinton (1993-2001), foi sumariamente declarada concluída. A falta de alimentos já ceifara a vida de cerca de trezentos mil cidadãos somális, mas mesmo depois da força-tarefa já estruturada no ano anterior, nem a Organização das Nações Unidas (ONU) conseguiu repassar a carga de mantimentos despachada pela comunidade internacional. Os líderes tribais do país do Chifre da África queriam antes demonstrar sua suposta força que impedir que seus compatriotas tombassem da maneira mais indigna, rescaldo de um injusto ódio antiamericano que redundou no 11 de Setembro.
Ridley Scott, um dos senhores da guerra de Hollywood, se propõe a retratar um episódio tão bizarro quanto tétrico em “Falcão Negro em Perigo” (2001), mais uma das tantas provas de que a humanidade nunca desce tão baixo como durante a guerra. Passados três anos da derrubada não de um, mas de dois helicópteros ao longo dos confrontos entre as nababescas tropas americanas e os guerreiros somális, pouco mais que farrapos mesmo sob os auspícios de facções extremistas islâmicas como o Hezbollah, do Líbano, e o palestino Hamas, Scott alcança o distanciamento mínimo para tecer seu ponto de vista acerca do conflito, um dos mais sangrentos da história dos dois países. Para o diretor, interessam menos as justificativas político-diplomáticas sobre o que, afinal, permitiu a escalada da guerra do que o dia a dia dos soldados americanos, irmãmente unidos em todos os momentos. Essa confiança cega de uns nos outros, esse sentimento ubíquo de impotência, de que só lograriam sucesso se dispostos a levar a termo todas as estratégias definidas pelo comando, transmitidas da matriz em Washington até o soldado mais humilde, foi o que, paradoxalmente, contribuiu para o malogro acachapante das operações dos Estados Unidos na Somália. O propósito de encenar um ataque surpresa pelo ar, contando com o devido respaldo terrestre, foi considerado elementar demais, e os homens se abstiveram de carregar consigo equipamentos de visão noturna, provisões alimentícias e até os cantis cheios de água. Não levaram em conta a óbvia advertência de que o inimigo, claro, conhecia muito melhor o terreno, e como num Vietnã transcorridas quase duas décadas, as sofisticadas aeronaves americanas, operadas praticamente sem a interferência humana, foram emboscadas pelos rudimentares foguetes dos nativos. A mensagem que fica é quanto à inépcia e à fragilidade da política dos Estados Unidos contra o terrorismo, sua tibieza em adotar uma postura assumidamente mais aguerrida contra grupos paramilitares mundo afora, o que teria fomentado a instalação e a mantença de células terroristas no Ocidente — em território americano, inclusive.
O roteiro de Ken Nolan e Steve Zaillian, inspirado no livro do jornalista e escritor americano Mark Bowden, então redator do “The Philadelphia Inquirer” e hoje correspondente do “The Atlantic”, esmiúça detalhes técnicos e torna um pouco menos obscuros meandros históricos dos intestinos de boa parte das questões que tinham relação com a guerra, direta ou nem tanto. As mudanças de planos diante de uma realidade que, indomável, se recusava a apresentar melhora, as baixas incessantes, o suprimento de insumos médicos e até de comida que iam minguando, está quase tudo na versão fílmica para o relato de Bowden, com a vantagem primária das imagens, uma pletora delas, e nisso o gênio de Scott é imbatível. Dispondo de efeitos de computação gráfica pontuais, e apostando alto em enquadramentos que valorizam a enormidade do que se assiste, o diretor registra os dois incidentes e as consequentes batalhas contra os rebeldes somális, tudo observado a distância segura do bunker comandado pelo general William F. Garrison, de Sam Shepard, hábil em delegar resoluções que deveriam ser suas. Após ter conseguido rastrear a localização do líder tribal Mohammed Farrah Aidid, preparado para encabeçar uma ofensiva contra as instalações das tropas americanas, Garrison deixa nas mãos do capitão Danny McKnight, de Tom Sizemore, partir ou não para cima dos adversários em dada altura dos combates. Em pouco tempo, o que se viu foi mesmo algo equiparável ao rebaixamento do Vietnã, conjuntura que exigiu a interferência unilateral de Clinton quanto a encerrar a operação e trazer de volta o que ainda sobrava do contingente — junto com um carregamento extra de corpos em féretros.
O orçamento de 92 milhões de dólares, algo como um bilhão de reais, corrigidos, mostra o heroísmo de homens que permaneceram anônimos ao longo dos anos, ao passo que a crise humanitária na Somália persiste. Em 4 de dezembro de 2020, o republicano Donald Trump ordenou a retirada de “grande parte” do que ainda havia de soldados americanos em território somáli.
Filme: Falcão Negro em Perigo
Direção: Ridley Scott
Ano: 2001
Gêneros: Guerra/Ação/Drama
Nota: 9/10