Depois de uma vida inteira de privações e ultrajes numa sociedade desigual, um dalit resolve ir à forra contra quem o destrata, ou seja, todo mundo, e para tanto, conta com a ajuda involuntária do filho, um geniozinho cheio de manias. Personagens com tal constituição despertam em nós os instintos mais selvagens, porém os mecanismos que um bom ator, munido de um texto cuidadoso, desenvolve a fim de contornar a ojeriza inicial e capitalizá-la a seu favor, são uma atração à parte num filme. Não que seja questão de simplesmente virar uma chave e tudo se resolver como que por encanto; esse é apenas o primeiro passo. Uma vez vencida a resistência a um protagonista de moral dúbia e com muitos tons sombrios, é o momento de observar o que fazer da história em si, já que uma coisa exerce notória dependência sobre a outra. Desenvolver esse argumento central, o do pai meio dado a malandragens, indignado com o tratamento que o mundo lhe dispensa, mas ao mesmo tempo amoroso, em grande medida preocupado com o que será do futuro do garoto, é etapa em que se consolida a força do enredo, mais e mais guarnecido de elementos capazes de torná-lo memorável.
Baseado no romance do jornalista e escritor hindu Manu Joseph, “Golpe de Classe” (2020) mistura ciência, crítica social e sátira política ao contar a vida de seu protagonista, um homem em busca de reparação pelo que considera um rol de injustiças contra um homem alijado pelo que se convencionou denominar como “o sistema”. O diretor Sudhir Mishra se vale desse tipo assumidamente hesitante para dar sua versão sobre a Índia de nosso tempo, um país que anseia por se incluir entre os grandes, mas não renuncia a pensar pequeno nas questões que julga que o resto do mundo avalia como desinteressantes. O roteiro de Bhavesh Mandalia e Abhijeet Khuman frisa a truculência que cerca Ayyan Mani em todos os ambientes em que circula, a começar de sua própria casa. Ayyan, vivido por Nawazuddin Siddiqui, um dos maiores atores de Bollywood, passa a não mais se reprimir e explicitar a insatisfação com a vida que vem levando, comportamento desencorajado pela mulher, Oja, de Indira Tiwari. A falta de afinidade com Oja é compensada pela boa relação com o filho Adi, um menino excepcionalmente dotado e de sensibilidade rara, mas que sofre por não corresponder às expectativas de seus professores, devido a uma ligeira deficiência auditiva. Esse é um dos pressupostos de onde Mishra sai a fim não de justificar os desvios de caráter que Ayyan vai apresentar, mas para torná-los menos racionais e menos condenáveis porque afetos a conjunturas muito específicas. Sua fúria o absolve, ainda que por um tempo previamente estipulado pelo público.
Siddiqui dá a Ayyan a dimensão que o personagem exige. Figura essencialmente controversa, cuja ira do mundo que o quer sem voz, subjugado, passivo é o sentimento que termina por fazer dele o vilão da trama, esse homem prefere abraçar uma revolta que o intoxica a se moldar ao cárcere que o acolhe. Esse cárcere é toda a cidade de Mumbai, que faz questão de deixar clara sua oposição a ele e sua família. O lugar onde fora criado, fizera a vida, se casara é hoje um antro de iniquidades, das quais ele é, quase sempre, a grande vítima. Uma vez que percebe que esse destino pode ser a única herança a legar a Adi, Ayyan toma as providências que consegue, valendo-se do filho, que descobre ter uma inteligência extraordinária. O aproveitamento abusivo do menino, em nome de quem leva a cabo a tropelia a que o título faz referência, é o pretexto que faltava a Mishra quanto a abordar os temas mais espinhosos do longa, com destaque para um sistema educacional que, na prática, serve a perpetuar tirania e opressão, aprisionando crianças pobres em suas fragilidades sociais. Além, por óbvio, da corrupção policial, assunto recorrente no cinema indiano.
Filme: Golpe de Classe
Direção: Sudhir Mishra
Ano: 2020
Gêneros: Comédia/Drama
Nota: 8/10