A questão racial nos Estados Unidos continua a ser um tema delicado, especialmente quando envolve instituições cuja primeira razão de existir deveria ser proteger o cidadão de arbitrariedades e garantir sua integridade a despeito da cor de sua pele, e não lançá-lo num torvelinho de caos e sofrimento desnecessários, quando não menoscaba desabridamente seu direito mais elementar: o direito à vida. Em 1971, a rede de educação pública americana julgava um absurdo estudantes brancos se juntarem a alunos negros, o que degringolou numa verdadeira guerra entre defensores de escolas mistas e os que argumentavam a respeito da suposta incoerência da medida, uma vez que os negros teriam um déficit intelectual em relação aos brancos — o que até poderia ser verdade, mas não porque esses estudantes fossem menos dotados que seus colegas brancos, mas justamente por estarem os negros na desvantagem em que a segregação os encasulava. Não demorou até que vozes ressonantes da sociedade civil se levantassem contra o que prometia ser uma das batalhas mais encarniçadas do movimento negro na Carolina do Norte, um lugar entre o céu e o inferno da discriminação por motivo étnico na maior democracia do mundo.
Robin Bissell se dedica a entender esse momento do mais abjeto obscurantismo na história da América a partir de dois de seus atores mais efusivos de cada lado. Seu “The Best of Enemies” (2019) começa algo perdido em meio à violência que prenuncia sem o devido contexto, porém à medida que vai encontrando seu eixo, molda-se à perfeição no que se deseja ver numa história tão complexa, ou seja, reflexão antes que se derrame na tela uma tempestade de balas, de verdade ou não. Bissell se arrisca subvertendo esse mandamento básico do manual do bom cinema, mas termina por alcançar o resultado mais conveniente e, de quebra, prender o espectador. O pandemônio a que se assiste no introito do roteiro de Bissell, com um tiroteio que mais confunde que mesmeriza, cede lugar à condução sistemática do diretor, que não deixa solto nenhum dos muitos conflitos que faz questão de trazer à cena. E conforme se movimenta, a trama central, quase que por vontade própria, cresce e toma conta da tela.
A relação entre Ann Atwater, a ativista pelos direitos civis dos afroamericanos (1934-2016) encarnada por Taraji P. Henson, e Claiborne Paul Ellis (1927-2005), então membro da Ku Klux Klan da Carolina do Norte e depois aclamado líder da facção no estado, irretocavelmente composto por Sam Rockwell, claro, não tarda a azedar, e com ainda mais força depois que o advogado negro Bill Reddick, de Babou Ceesay, consegue a proeza de fazê-los trabalharem juntos. Em pauta nas charrettes, como ficaram conhecidas as assembleias interraciais, depois de idas e vindas pouco elucidativas, o encaminhamento a ser dado para o impasse que dominou o cotidiano de alunos negros e brancos em East Durham. O incêndio na escola frequentada pelos alunos negros escancarou a necessidade de se discutir a adoção de um modelo único de ensino, aprovado por grande parte da população branca da cidade. Conforme se vai ver na reta final da trama, o assunto é liquidado por uma margem estreita, ocasião em que Ellis se revela um humanista inveterado, passagem que serve de fonte de polêmicas um tanto artificiais.
É impossível se concordar com o argumento do salvador branco sem que se advogue de maneira automática o pensamento racialista que “The Best of Enemies”, antes de mais nada um manifesto contra a intolerância, quer demolir, com toda justiça. Alegar que o filme de Bissell, branco, reforça o preconceito porque apresenta um personagem igualmente branco que se rebela contra o apartheid setorial dos Estados Unidos, muito mais sutil que aquele vigente na África do Sul entre 1948 e 1994, mas da mesma forma perigoso e odiento, é o mesmo que dizer que brancos devem se meter com seus próprios enroscos, fechando os olhos à obviedade de que um pais é um ajuntamento de pessoas em alguma proporção semelhantes entre si, ávidas das mesmas realizações. Ou que Spike Lee dissemina o ódio racial por encampar as histórias que crê dignas de serem contadas, com um viés assumidamente simpático à população negra em seu país. O ódio mata, mas a má-fé e a desonestidade intelectual também não deixam por menos.
Filme: The Best of Enemies
Direção: Robin Bissell
Ano: 2019
Gênero: Drama histórico/Biografia
Nota: 9/10