O filme devastador da Netflix que vai continuar te apavorando depois dos créditos finais

O filme devastador da Netflix que vai continuar te apavorando depois dos créditos finais

Rancores que se imaginava superados quase sempre são as experiências mais tóxicas da vida de alguém. Recordações de festas de aniversário ainda em tenra idade; almoços de domingo despretensiosos, mas tomados de afeto; eventos que remetem a uma família outrora feliz são capturados pelas lentes da amargura a fim de apresentar a outra face de uma mesma moeda, provando que a melancolia e a felicidade têm uma raiz comum, mas não só. Em muitos casos, alguém é infeliz a tal ponto que passa a carregar no próprio DNA a vivência de toda essas dores, que extravasam da alma e vão escorrendo como um caldo negro e viscoso para a superfície do visível, deixando uma marca, um estigma, que aparta esse indivíduo do resto da humanidade, ao passo que o torna igualmente mais próximo dos demais na medida em que temos todos no espírito as chagas que nos fazem ser quem somos, nem mais nem menos. Aprender a lidar com essa realidade com a maior rapidez possível decerto constitui um alívio inestimável, servindo ainda para nos blindar dos futuros golpes, a única certeza que se pode ter quanto aos mistérios caprichosos da existência.

O diretor Jake Mahaffy evoca a ansiedade de uma mulher grávida para falar sobre abandono, emoções reprimidas e a influência do sobrenatural. Como o próprio título sugere, “Vozes do Passado” (2020) faz ecoar não só tudo o que se prefere estupidamente deixar a salvo das impressões alheias, só para ir apodrecendo e envenenando um coração já dominado pelo ressentimento. Num olhar ligeiro, o filme de Mahaffy não tem nada de mais, somente replicando muito do que já se assistiu em histórias também plenas de cenários sombrios, cujo realismo da fotografia de Adam Luxton é mesmerizante. Aos poucos, com muito jeito, o roteiro se espraia para o que não é tão óbvio assim, momento em que despontam os elementos que conferem à trama, disposta num único braço central, a natureza de horror muito bem contrabalançado com um suspense que chama atenção pelo requinte. Quando menos se percebe, a narrativa já começou a pontuar as situações de que brota um pavor genuíno, em que os personagens se fundem ao ambiente em que estão inseridos. Más recordações ficam tanto mais aterrorizantes devido aos corredores invencíveis, envolvidos numa penumbra onipresente. É nesse momento que os possíveis fantasmas que não viam a hora de entrar em cena se fazem notar por fim, apenas mais uma etapa do tormento incessante da protagonista. 

Mahaffy faz a narrativa oscilar num movimento quase exaustivo de fluxo contínuo e retrocesso a um tempo já distante da ação que motiva o enredo, expediente que se presta a fomentar no público as mesmas dúvidas que tem Ellie, a mocinha vivida por Emma Draper. Na reta final de uma gravidez difícil, Ellie vai morar com a mãe, Ivy, de Julia Ormond, na casa que as duas herdam depois da morte de um parente. Logo se percebe que Ivy não está em condições de prestar nenhuma assistência à filha, absorta com as questões do inventário e o marido doente, e até a desestabiliza ainda mais com manifestações de um falso amor, exagerado, farsesco, que oculta as intenções que fundamentam o longa, fazendo do tipo interpretado por Ormond a típica bruxa vista à exaustão em boa parte dos contos de fadas, mulheres que se valem da maternidade como um mecanismo de compensação psíquica, egocêntrico e autodestrutivo, nessa ordem, muito semelhante ao que o espanhol Ramón Salazar apresenta em “O Vazio do Domingo” (2018). Em “Vozes do Passado” tudo se complexifica dada a referência a Cara, a filha perdida, que não se sabe nunca se está viva ou morta, papel de Ava Keane.

O grande mérito do filme é saber o momento exato de virar a chave dos conflitos entre uma mãe e uma filha em graus semelhantes de um sofrimento mental que não cede para se estender rumo a outras possibilidades, como a da psicopatologia explicando a atmosfera de medo a se apoderar da casa e de seus moradores. Nem todo suspense chega tão próximo de um jeito assim honesto de ver as paranoias do cotidiano — no caso em tela, a relação doentia de pais e filhos.


Filme: Vozes do Passado
Direção: Jake Mahaffy
Ano: 2020
Gênero: Thriller
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.