A vida está sempre a exigir de nós coragem, mas não só. Não é raro despontarem ao longo do caminho as ocasiões que nos fazem duvidar da grande beleza da existência, quando fardos penosos, espantosamente incômodos, embargam qualquer sonho, os que de tão certos se confundem com a realidade e os que se aproximam mais da natureza etérea e às vezes nociva do delírio. O esfacelo das ilusões, a premência quanto a encarar a dura realidade, a convicção silenciosa de que merecemos muito mais do que o quase nada com que a sorte nos brinda, todas essas agonias, todos esses infortúnios permeiam a trajetória de qualquer pessoa, por mais feliz que se considere. Evidentemente, alguém que esteja no domínio pleno de suas faculdades mentais tem a competência necessária para, ao se deparar com cenários como esse, encontrar o jeito certo de lidar com o problema e passar por cima de todos os obstáculos até com muito mais galhardia do que supunha. A questão é justamente manter a visão desembaraçada, ou resgatá-la, a fim de colocar tudo no seu lugar devido.
O diretor Jeff Baena se vale da protagonista de “Entre Realidades” (2020) para falar do martírio que também é a vida, assinalando que, malgrado as tantas angústias, viver tem lá sua graça. Alison Brie, a protagonista e coautora do roteiro com Baena, encarna uma mulher que não distingue mais a vida real da fantasia. A princípio, o distúrbio mental é apresentado não exatamente como uma fonte de conflito, mas de passagens cheias de uma comicidade ingênua, quase infantil. O texto de Brie enfatiza um histórico familiar de psicopatologia, possivelmente surtos esquizofrênicos, vividos pela avó, o único registro afetivo em seu passado. Essa mulher atormentada por lembranças que ela mesma não consegue definir como se parte de um momento já muito distante ou se a alucinação mais desabrida sabe que sofre, passa a ter consciência de que precisa de ajuda, mas se mostra também reticente quanto a assumir as manifestações da doença, cada vez mais incapacitantes. O diretor vai destrinchando esse novelo com cautela, até que não haja mais um outro olhar para a personagem, miseravelmente tomada pela loucura.
Brie confere a Sarah sua dimensão de mediocridade com precisão cirúrgica. Aos poucos, o espectador vai se inteirando de sua rafa existencial. Sarah tem um trabalho que se esforça para ver como algo que a realiza, mas no fundo sabe que exerce uma atividade cujo único propósito é lhe permitir comer e pagar sua cota no aluguel do apartamento que divide com Nikki, de Debby Ryan, peso suavizado em alguma medida pela amizade sincera — mas muito superficial — com Joan, a colega vivida pela excelente Molly Shannon, subaproveitada. Conforme sua personalidade se descortina, fica-se sabendo que ela e a avó partilham a mesma fisionomia, o que dá azo a um respiro cômico muito bem elaborado pelo talento de atriz principal, que leva Darren, o candidato a par romântico interpretado por John Paul Reynolds a seguir com ela até o cemitério em que a avó fora sepultada. Como se pode antever, também suas possibilidades amorosas são reduzidas a uma promessa diáfana, ponto em que perde a razão de modo irreversível.
É preciso algum repertório para se entender “Entre Realidades”, um dos filmes mais dolorosamente honestos na abordagem do transtorno mental. O desfecho, momento em que o título original “Horse Girl”, “garota do cavalo”, se explica, é coerente ao desvario de Sarah, uma mulher sob a influência exclusiva de suas próprias idiossincrasias.
Filme: Entre Realidades
Direção: Jeff Baena
Ano: 2020
Gênero: Drama
Nota: 8/10