Desde o momento em que vemos a luz do mundo, se inicia uma jornada em que o homem erra sem rumo certo, guiados os que têm fé, por um ser incorpóreo e mais forte, comumente denominado Deus, cuja figura essencial remete a ideias como proteção, amparo, cuidado. Por mais confiança que se devote nesse Deus, jamais houve quem estivesse convicto de suas escolhas todo o tempo, e isso não é propriamente ruim. A despeito das provações, da fraqueza de ânimo, do espírito que se verga, esses instantes de tormenta se prestam a uma excelente oportunidade para que testemos a nós mesmos, submetamos nossas vontades a um pouco de razão e essa reflexão fomente um exame de consciência rigoroso, mediante o qual possamos concluir se permanecem de pé as crenças com as quais nos fomos erguendo ao longo da vida ou se é dada a hora de mudar de rumo drasticamente. Somos todos sujeitos às instabilidades que nos consomem o espírito e maltratam o corpo, mas ao atingir uma determinada fase de nossa trajetória, viver parece que fica particularmente delicado. Na adolescência, se está ainda muito mais vulnerável, muito mais aberto a influências externas, para a melhor e, claro, para a pior. Essas tantas incertezas da vida maltratam a ponto de quase envenenar uma alma jovem, e se essa alma se orienta por princípios de uma confissão religiosa caracterizada por sua visão de mundo propositalmente restritiva, mesmo castradora, a colisão contra o muro quase ínvio da realidade são favas contadas.
“Rumspringa” (2022), da diretora alemã Mira Thiel, se embrenha junto com seu inexperiente personagem central pela floresta densa e agreste do autoconhecimento enquanto tenta se manter a salvo do encanto pelo proibido, pelo que lhe disseram ser proibido. Esse protagonista, membro de uma comunidade amish, conhecida por adotar um estilo de vida primitivo e austero — os amish recusam-se a empregar qualquer forma de tecnologia em suas atividades, inclusive energia elétrica —, atingiu um estágio em que não apenas pode, mas é estimulado a desfrutar de muitas das experiências mundanas, só possíveis, por óbvio, bem longe de sua aldeia. Trata-se do rumspringa do título (ou “correr por aí”, em tradução literal do alemão arcaico, “vagar sem rumo”, vadiar), quando o jovem amish do sexo masculino — e isso é já um sintoma da estreiteza da filosofia amish —, precisa descobrir se está afinado com a severidade dos princípios da colônia natal. O pecado está para além das cercanias de seus vilarejos particulares, acreditam os amishes, é para lá onde esse encontro tem de acontecer.
Jacob, o amish a ser testado, deixa a casa dos pais na Pensilvânia, no nordeste dos Estados Unidos — território que tem em seu DNA a defesa da liberdade religiosa desde 1681, quando os quakers foram autorizados a se estabelecer na região —, com destino a Alemanha, a fim de encontrar os parentes que ainda não conhece, entre eles o tio menonita, derivação da corrente anabatista que deu origem aos amishes. Interpretação mesmerizante de Jonas Holdenrieder, Jacob desembarca em Berlim acusando ter vindo de um mundo muito distante. Na saída do aeroporto, ao ver uma moça tomar um táxi, deixa seus pertences, guardados num saco de aniagem, junto às malas dela e abre-lhe a porta do carro. Desavisadamente, o taxista pega tudo, a bagagem dela e o fardo dele, e leva embora. A única pista que tem sobre a identidade da passageira é o cartão de uma loja de conveniência especializada em produtos veganos, indício de que podem se dar bem, afinal amishes, apesar de seguir uma dieta à base de carne de porco, não usam pesticidas.
A premissa usada por Thiel — formulaica, mas eficiente — dá azo a que se conheça um pouco da inocência de Jacob, tão abissal que o incapacita a habitar o mundo como ele verdadeiramente é. Ele precisa recuperar suas coisas e, claro, a primeira providência a se tomar é não perder aquela garota de vista. Para tanto, precisa também ele de um táxi, mas não tem um níquel, e o roteiro, cocriado pela diretora em parceria com Nika Heinrich e Oskar Minkler, não esclarece como Jacob chegaria até o tio, a despeito de ter perdido sua tralha, se, como faz questão de frisar, amishes não dão valor ao dinheiro — e alargando-se o fio do raciocínio, e igualmente falta de sentido a viagem de avião. Fica pelo caminho, andarilhando pelas ruas, dormindo junto à sarjeta, até que avista um rapaz de barba hirsuta e que, como ele, usa um chapéu de palha, a estética amish típica. Mas Adolf, ou Alf, o personagem de Timur Bartels, é um só um hipster a semelhança de outro qualquer, meio mimado, mulherengo e beberrão. Nesse primeiro contato, as diferenças entre os dois saltam aos olhos, por evidente, mas é possível também enxergar que esses dois antípodas têm muito em comum. O argumento da desagregação familiar, pelo lado de Alf, e o mote da incansável vigilância paterna, da parte de Jacob, tomam corpo em diálogos sutis, depois que o personagem de Bartels se resigna quanto a não conseguir se livrar do adorável intruso e o abriga no apartamento que divide com o monomaníaco Bo, vivido por Rauand Taleb — em troca de um aluguel semanal e para impressionar Freya, a garota com quem está saindo. Jacob, a essa altura, já aprendeu que terá de arrumar um emprego se quiser um teto sob o qual dormir na cidade grande e vai trabalhar como entregador na quitanda frequentada pela garota com quem seu caminho cruzara tão atabalhoadamente, cujo endereço descobre com a ajuda de Alf, que decifra o código QR do estabelecimento com a câmera do celular. Uma encomenda o coloca frente a frente com Ina, a artista plástica interpretada por Gizem Emre, e a partir desse momento sua vida passa a atravessar as metamorfoses de que tanto precisava para se tornar, de fato, um homem.
A diretora brinca com os clichês afetos às comédias românticas como “Um Match Surpresa” (2021), de Hernán Jiménez García, explorando a proposição da diferença entre duas pessoas que se apaixonam à luz do discurso religioso-filosófico, ainda que palidamente. As subtramas que envolvem o contraste que se instala entre Jacob e os ambientes que lhe são apresentados por Alf, de quem se torna um amigo inseparável, são elaboradas com riqueza de detalhes, embora meio simploriamente. Em momento algum, o personagem de Bartels, malgrado toda a malandragem, desconfia do possível comportamento a ser incorporado pelo protagonista, mormente depois que resolve assumir o relacionamento com Ina, motivo do único entrevero dos dois. A sequência em que Jacob e o tio finalmente se apresentam é, sem dúvida, a mais reveladora de “Rumspringa”; não obstante tudo o que vivera, é só depois da conversa que os dois mantêm que Jacob se sente pronto a tomar a maior de suas resoluções, ocupando os dois pratos da balança com as verdades que o formaram e a promessa de uma vida novinha em folha.
Filme: Rumspringa
Direção: Mira Thiel
Ano: 2022
Gêneros: Comédia/Romance/Coming-of-age
Nota: 9/10