Por que eu deveria fazer alguma coisa para a posteridade? O que a posteridade já fez por mim? Christian Bridgwater / Dreamstime

Por que eu deveria fazer alguma coisa para a posteridade? O que a posteridade já fez por mim?

A natureza está sitiada, colocando a qualidade de vida em risco. Não só a qualidade de vida do ponto de vista mercadológico, que consiste em consumir porções diárias cada vez maiores. Mas a qualidade de vida mesma, com a entrada em cena de novas intempéries, novas doenças pela alteração de micro-organismos, a incapacidade de regeneração de nossos estragos, o declínio da fertilidade do solo, o desconforto pela insalubridade geral do clima, a toxidade nuclear.

Pelo porte do problema uma ação efetiva teria que partir de uma ação enérgica dos Estados nacionais e contar com o apoio, espontâneo ou induzido, da maioria da população do planeta. Mas os Estados são monstros esquizofrênicos (Leviatãs?). A parte encarregada de cuidar da natureza é fraquinha e ineficiente, quando não um mero balcão expedidor de alvarás. Não para evitar a destruição, mas para promovê-la de forma consentida e certificada. Destruição certificada com ISO. As agências ambientais dos países não têm poder de legislar (ou propor leis) nem eficácia em suas ações fiscalizatórias. As multas impostas aos poluidores quase nunca são quitadas; os incentivos aos preservadores raramente são saldados. A ação do governo se limita a expedir relatórios de questões isoladas sem gerar condições básicas para ações concretas. E com frequência muito acima do conveniente se envolvem em esquemas de oferecimento de dificuldades para vender facilidades.

Enquanto isso os órgãos de exploração dispõem da potência bruta de cavar buracos de milhares de metros e retirar o sumo da terra onde ele estiver. De devastar tabuleiros e serras, der transpor rios e drenar os charcos.  De poluir o ar, empestear a água, de gerar um barulho ensurdecedor, afugentando a quietude da janela climática que permitiu nosso impulso civilizatório, forjando um ambiente propício à aparição das sete mil pragas da pós-modernidade.  

É difícil encontrar alguém, por mais tosco que seja, que não afirme ter algum tipo de preocupação ambiental. No entanto, essa preocupação está longe de se traduzir em algum tipo de ação coletiva que possa trazer reflexos positivos no uso parcimonioso dos recursos naturais. Continuaremos na tentativa de identificar as razões desse descasamento entre preocupação e atitude. É provável que, se conhecermos os motivos, teremos mais forças para lutar contra eles ou mesmo concluir que não vale a pela essa luta e possamos chegar o bete sem nos deprimir.

O mundo do futuro está sendo forjado hoje. É comum as pessoas afirmarem que se preocupam com a situação das gerações futuras. Inclusive nossa ação de estragos extremos poderá inviabilizá-las. No entanto, estudos comprovam que não há uma preocupação efetiva com as chamadas “futuras gerações”.  É parte da especificação do Homo Sapiens se importar com “o próximo”. Próximo de sangue, próximo de convivência, próximo no espaço e no tempo. Não é item do cardápio de nossos dons nos ocuparmos com pessoas distantes. Nossa “transitividade de sentimentos” não alcança as futuras gerações. Ela se dissipa depois de duas ou três gerações. São seres que, apesar de nossos descendentes (seja de sangue, seja de geração) se acham obscurecidos pela distância. Carlos Drummond de Andrade, em seu poema “O novo homem”, traduz muito bem este sentimento:

Não chame de filho
este ser diverso
que pisa o ladrinho
de outro universo.

E não é só a distância que nos impede de direcionar nossas ações em favor das gerações futuras. As ciências econômicas trazem uma contradição em termos em seus postulados. Os economistas acreditam que seja possível um crescimento infinito da economia dentro de um universo de recursos finitos. Acenam com novas descobertas, novas tecnologias etc. Essa superstição corrente inculca nas pessoas que as futuras gerações terão vida melhor que a nossa. Sacrifício em favor delas seria uma atitude de anti-Robin Hood: transferir dos prejudicados de hoje para os privilegiados de amanhã. 

Outros, no fundo, são céticos quanto a nossa possibilidade de ajudar efetivamente as gerações do futuro. O que garante que nossos descendentes irão valorizar áreas verdes, Mico-leão-Dourado ou Baleia Azul? Quem garante que meu trineto irá depender do bioma natural para sobreviver? As gerações distantes poderão muito bem habitar paraísos artificiais em redes high-techs, respirando alegremente fumaça de óleo diesel ou suspensão de ácido sulfúrico.  Mudanças tecnológicas poderiam transformar em coisa sem valor matérias-primas que são essenciais para a geração presente.

Outro aspecto é a questão da reciprocidade. Nós não gostamos efetivamente de fazer algo pelos outros. Mas se tivermos que fazer, que seja para alguém que nos fique cativo por dívida de gratidão. O humorista Groucho Marx perguntou certa vez: “Por que eu deveria fazer alguma coisa para a posteridade? O que a posteridade já fez por mim?”  Na verdade as gerações futuras podem no máximo zelar, por algum tempo, de nossa memória e manter limpo o túmulo em que fomos enterrados. Nada além disso. Mas estaríamos efetivamente interessados nessas providências para garantir a reciprocidade? Fernando pessoa traduz este sentimento com muita propriedade: “Não tenho preferências para quando não puder ter preferências”.

Por essas e tantas outras é que a natureza vem recebendo o nosso menosprezo de consequências devastadoras.