A joia escondida da Netflix que tem 100% de avaliações positivas mas você ainda não assistiu Jagtesh Kohli / Netflix

A joia escondida da Netflix que tem 100% de avaliações positivas mas você ainda não assistiu

O cinema indiano vai muito além de musicais engraçadinhos, melodramas chorosos e heróis e vilões chapados, sem nuanças de personalidade nem indagações de natureza ética. Muito antes de D.W. Griffith (1875-1948), o criador da linguagem cinematográfica, aparecer para o mundo com seu icônico “O Nascimento de Uma Nação”, em 1915, drama de guerra que se espraia sobre o afastamento de dois amigos durante a Guerra de Secessão (1861-1865), a Guerra Civil Americana, os diretores hindus N.G. Chitre e Dadasaheb Phalke (1870-1944), o pai do cinema indiano, já haviam feito razoável sucesso com “Shree Pundalik”, de 1912. O primeiro longa do embrião do que viria a ser Bollywood, ainda mudo, conta a história do santo Pundalik, baseado no texto de Ramrao Kirtikar. Como se vê, a cultura da Índia prima e preza pela diversidade, e nem poderia ser de outra forma. Com um território de magnitude continental, feito o Brasil, a Índia tem uma população mais de seis vezes maior que a brasileira. São quase 1,4 bilhão de habitantes, gente o bastante para que o cinema hindu quisesse genuinamente retratar o cotidiano e a solenidade por trás de cerimônias religiosas, outro indício da força das manifestações culturais do país.

O sentimento do povo indiano é um dos principais aspectos compreendidos por “Histórias Incomuns” (2021), tetralogia em que os diretores Shashank Khaitan, Raj Mehta, Neeraj Ghaywan e Kayoze Irani revelam uma Índia além do clichê, tão mágica quanto polêmica, tão idiossincrásico quanto universal. Depois de um dispensável prólogo em animação que se presta a enumerar os membros da equipe técnica, o filme abre com o primeiro conto, “Amante”. Aqui, Shashank Khaitan dá uma pequena prova do que se pode esperar da compilação, dosando com sabedoria drama e violência, ainda que esta acabe por predominar sobre aquele. Tipicamente bollywoodiano, o curta traça um panorama arguto e corajoso, mesmo que ligeiro, acerca da questão identitária na Índia atual. Jaideep Ahalwat, que na história atende pelo nome de Babloo Bhaiyya, vive um homem influente, atormentado por um segredo. Seu casamento com Lipakshi, uma mulher mais jovem, é apenas simbólico. Eles permanecem juntos porque a personagem de Fathima Sana Shaik é filha de um político tradicional, com quem Bhaiyya mantém relações comerciais pouco republicanas. A entrada em cena de Raj, o filho do motorista interpretado por Armaan Ralhan, acende no casal, tanto em Bhaiyya como na esposa, as emoções que não conseguem nutrir um pelo outro e que já supunham mortas. Ahalwat, um dos atores mais queridos da Índia, encarna Bhaiyya sem medo de represálias ideológicas ou pseudomorais, dando calor a seu personagem. Em “Amante”, Khaitan advoga em defesa da importância do amor, a despeito da natureza de que se constitua; aos poucos, o espectador se dá conta do que de fato o diretor quer transmitir, até que a sequência em que Raj, que, como o pai, começa a trabalhar para o empresário, e seu novo patrão tem a conversa que fundamenta o roteiro de Khaitan escancara as dores de cada um, reservando ainda lugar para Lipakshi, a grande vítima na trama. O papel subalterno da mulher é, a propósito, um leitmotiv poderoso em “Histórias Incomuns”. A visão da mulher como um objeto voltado à diversão de homens inseguros, mesquinhos ou truculentos se vai avultando, em maior ou menor proporção, ao longo dos três curtas seguintes.

“Brinquedo”, a segunda história, dirigida por Raj Mehta, com texto de Sumit Saxena, leva a ideia da dominação masculina ao paroxismo, valendo-se do desempenho da protagonista. Meenal, da excelente Nushrratt Bharuccha, é uma empregada doméstica que divide um cubículo com a irmã caçula Binny, papel de Inayat Verma. Esse é o segmento em que a face horrenda de um país ainda em busca de se colocar num mundo em metamorfoses incessantes torna-se mais evidente. Sofrendo com a falta de energia desde que sua ligação clandestina foi desligada — e, claro, sem ganhar o que lhe garanta pagar pelo serviço —, Meenal se vê obrigada a prestar favores sexuais ao patrão, Vinod Agarwal, interpretado por Maneesh Verma, para que Binny volte a assistir à televisão antes da aula. Fica patente que luz elétrica é um verdadeiro luxo numa Índia superpopulosa, onde o índice de pobreza extrema supera os 35%, ou seja, mais de um terço dos indianos vive com menos de um dólar por dia. Sentindo-se cada vez mais autorizado a abusar da funcionária, Agarwal se revela também dono de um temperamento sádico, seviciando Sushil, de Abhishek Banerjee, o outro empregado, e deixando claro que a luta de classes no país é muito mais que um conceito sociopolítico: é uma realidade literalmente cruel em que o falido sistema de castas perpetua iniquidades indefensáveis.

“Beijo Molhado”, dirigido por Neeraj Ghaywan, e “Não Falado”, de Kayoze Irani, são variações dos antecessores, observando-se a diferença de que a nítida preferência dos diretores por apurar a análise de temas de foro ainda mais íntimo, como a paixão não correspondida de uma mulher pela colega de trabalho, que por seu turno é casada, mas não se ajusta ao papel que se impõe a si mesma, no primeiro. Em “Não Falado”, o drama de uma garota que vai padecendo de uma surdez progressiva aponta a insensibilidade do pai, que se nega a aprender a língua de sinais para melhor se comunicar com ela — malgrado se interesse pelo assunto depois que conhece uma bela mulher — e a abnegação da mãe, que leva sua vontade de lutar pela inclusão da filha as últimas consequências.

Com um quarteto de diretores que não abrem mão de um toque pessoal e do caráter exclusivo de seus trabalhos, “Histórias Incomuns” consegue a façanha de divulgar a Índia no que ela tem de melhor — seu caos perfeito, suas ruas atulhadas de carros, mas de trânsito ordeiro, seu povo caloroso —, sem no entanto edulcorar suas mazelas. Em quem assiste, o filme deixa a sensação de pertencimento, como se a Índia fosse o mundo inteiro, ou o mundo inteiro coubesse na Índia. De certo modo, cabe mesmo.


Filme: Histórias Incomuns
Direção: Shashank Khaitan, Raj Mehta, Neeraj Ghaywan e Kayoze Irani
Ano: 2021
Gêneros: Drama
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.