De tirar o fôlego e cheio de reviravoltas, o filme escondido da Netflix que quase ninguém assistiu Dana Starbard / Netflix

De tirar o fôlego e cheio de reviravoltas, o filme escondido da Netflix que quase ninguém assistiu

Um homem que amargou uma temporada na cadeia seria o primeiro a se municiar dos mais variados estímulos para se conservar longe de problemas, lembrar-se de todo o inferno pelo qual passou e se empenhar em ter uma outra vida. Ninguém duvida do quão difícil é para um ex-presidiário recolocar-se no mercado de trabalho — e é justamente por essa razão que muitos voltam a delinquir, alimentando um ciclo perverso que favorece apenas o próprio crime —, mas é forçoso dizer que, claro, existem os que continuam a girar a roda sanguissedenta do submundo por vaidade, sustentada pelo dinheiro pretensamente fácil que dele jorra. E se por trás do mero desejo de alinhavar um pé-de-meia fornido há também boa medida se vaidade, por se saber que aquele é um ambiente em que se sobrevaloriza a coragem, a aventura, a ousadia, certo senso de empreendedorismo torto, fecha-se o arco que compõe o bandido quase perfeito, “quase” porque perfeito mesmo só seria se a atividade criminosa fosse liberada de vez, o que o cidadão comum às vezes até chega ao absurdo de considerar uma hipótese razoável.

O personagem central de “Wheelman” (2017) retorna ao ponto em que parara na escala da marginalidade social certo de que um ou outro trabalhinho para maiores gangues da América não serão o bastante para mandá-lo de volta ao cárcere, até que começa a ser caçado por bandidos dos piores coturnos por supostamente ter tentado dar um cavalo de pau no plano que lhe foi apresentado e se aproveitar de duzentos mil dólares da venda de um lote de droga. A verdade é que o protagonista do movimentado thriller de Jeremy Rush achava-se bastante esperto, mas fora vítima de uma trapaça muito bem urdida, e ele sequer sabe por quem. Tipo completamente desprezível, escória da escória de um sistema que se estrutura no menoscabo de normas e quem precisa se submeter a ele, o personagem de Frank Grillo é o piloto do título, tão descartável que, a exemplo do que se assiste em “Drive” (2011), de Nicolas Winding Refn, não tem nem nome. A forma hesitante como Grillo conduz sua interpretação deixa evidente que este é um homem encurralado, que talvez não tenha podido dispor de uma outra saída se não realistar-se às fileiras da criminalidade, acossado pela ameaça de ser preso novamente menos de um ano depois de solto, mas também endividado, decerto sem perspectiva de trabalho de nenhuma espécie e com uma filha adolescente que precisa (e quer) apoiar. É precisamente essa filha, Katie, papel de Caitlin Carmichael, que aos treze anos vai lhe servir de inspiração a fim de tentar, afinal, retomar o domínio sobre a própria vida. Ameaçado de perder a guarda da garota por Jessica, a ex-mulher vivida por Wendy Moniz, o encontro de pai e filha, o ponto alto do texto de Rush, é uma bela surpresa em meio a truculência de marmanjos que se ofendem por telefone. Zeloso a sua maneira, quando percebe que os superiores de Clay, de Garrett Dillahunt, o amigo da onça que lhe mete na maior cilada de sua vida, pode se encarniçar contra a menina, o piloto a aconselha a dirigir (!) até um complexo comercial nas redondezas e guardar por ele. O pai cheio de cuidados para com a filha, que teme por sua segurança — mas que mostra-se igualmente preocupado com o fato de a garota passar a noite sozinha com o namorado, quatro anos mais velho — é o mesmo homem que de presa assumira a condição de predador pouco antes e arrastara Clay até o carro, a fim de ter com ele uma conversa definitiva. Nessa sequência, um achado na edição de Padraic McKinley, a câmera é mantida dentro do veículo, acompanhando toda a ação a distância. Quando os dois voltam, se desenrola a subtrama mais violenta do enredo, por sua imprevisibilidade e exatamente por quão próximo fica o espectador do que acontece.

Como se nota, Jeremy Rush é capaz de manejar com criatividade toda uma gama de clichês, mormente os que tipificam esse gênero, pleno de seus inúmeros protocolos, contando com a providencial ajuda de Frank Grillo. Sem nada de excepcional, “Wheelman” é um grande filme ao se destacar sobre tudo o que já foi dito — e segue sendo feito ad nauseam.


Filme: Wheelman  
Direção: Jeremy Rush
Ano: 2017
Gêneros: Mistério/Crime
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.