Sutil e arrepiante, filme na Netflix tem 100% de avaliações positivas e você certamente não viu Divulgação / Netflix

Sutil e arrepiante, filme na Netflix tem 100% de avaliações positivas e você certamente não viu

Quando alguém diz que está bem pode, claro, não empregar toda a franqueza que sua resposta exigiria. Uma declaração aparentemente banal tem o poder de ocultar um sem-fim de emoções diversas, da serenidade espiritual um pouco além do recomendável a uma fúria quase incontida, que como um filete d’água numa represa de sentimentos procura a mínima fissura para fazer vir abaixo toda a mágoa que contém. Se essas máscaras sociais são imprescindíveis para que suportemos o convívio uns com os outros, fazendo com que mintamos por misericórdia, como rogava Nelson Rodrigues (1912-1980), são também o portal que detém o mais genuíno de uma pessoa de todo o resto, de tudo o que a contamina com a falsidade do mundo. Nem tudo pode ser dito, por óbvio; no entanto, há aquelas coisas que, quando não ditas apodrecem em nós, para chamar outra vez o grande Nelson. No fundo, sabemos muito bem o que é ou não conveniente de se dividir ou não com os demais, e se não o fazemos é só porque nos tornamos excessivamente adultos e matamos muito da candura sincera da criança que teria de viver em nós.

“Está Tudo Certo” (2018), da alemã Eva Trobisch, parte de um evento abjeto na vida de sua protagonista para abordar um tema dolorido para qualquer mulher, em qualquer lugar do mundo, seja em que tempo for, e daí atingir conclusões ainda mais devastadoras. No início do filme, contudo, ninguém faz ideia do sofrimento por que pode estar passando Janne, a mártir encarnada pela sensibilidade cortante de Aenne Schwarz. Essa mulher comum, nem bonita nem feia, mais para nova que para velha, tem uma vida modesta, sem grandes emoções, nada excêntrica, enquanto reforma a casa comprada com o namorado Piet, de Andreas Döhler, um seu homólogo do sexo oposto. Essa serenidade toda tem seus momentos de desordem, como Trobisch é muito competente em salientar, a despeito do turbilhão que colhe a protagonista a partir de dada altura do roteiro escrito pela própria diretora. Fica patente em Janne e Piet quando juntos que toda a afinidade que os une é muito menos insinuante que as diferenças que os separam, e quiçá esse também seja um motivo que leva ao conflito central do filme, ainda que obliquamente.

Trobisch vai sobrepondo cenários que, cada um em sua medida, trazem a instabilidade emocional que igualmente colaboram para o episódio de ignomínia que se passa com a personagem de Schwarz. À relação não muito estável com Piet, é acrescentado um súbito revés financeiro, que os obriga a vender os poucos móveis e equipamentos da pequena empresa que pretendiam abrir. Num salto não muito bem aclarado do enredo, um dos poucos ruídos da narrativa, Janne vai parar numa festa, que quase na iminência do desfecho, a diretora explica se tratar de uma confraternização de ex-colegas do ensino médio. Movida pelo entusiasmo perigoso do álcool, começa a flertar com Martin, um tipo aparentemente inofensivo, até um tanto abobalhado, performance digna de registro de Hans Löw. Noutro lance meio inexplicável — e pouco fidedigno —, Janne o convida a passar a noite em sua casa, conjuntura que facilita a saída do monstro que se esconde por trás daquela casca furta-cor de placidez e que avança sobre Janne, cuja máxima repulsa se limita a perguntar, completamente bestializada, sobre se aquilo estava mesmo acontecendo, menos indignada que tomada pelo escândalo e pela incredulidade, como se vítima de um delírio pós-alcoólico. Claro que em algum instante a ficha haveria de cair.

Parece que o encadeamento de anticlímax nebulosos é mesmo a característica mais marcante de que Trobisch deseja revestir seu filme. O reaparecimento de elos afetivos de passado da protagonista, como Robert, seu primeiro patrão, personagem de Tilo Nest, como que por encanto, até poderia ser comum numa história real, mas em se tratando de uma ficção soa farsesco. A deterioração de Janne é ainda mais palpável justamente por causa de Robert, ainda que ele não tenha culpa direta nisso. Hoje o renomado executivo de uma empresa de comunicação, Robert lhe oferece emprego, que ela aceita, sem saber, por evidente, que também trabalha para ele. A distância cada vez mais estreita entre Janne e seu algoz termina por conduzir ao rompimento com Piet, como se a desdita a perseguisse na figura nefasta de Martin.

A solução deus ex machina do roteiro para castigar o personagem de Löw — lançada num jato, como todo o resto —, decerto é o que mais molesta no filme, sem dúvida uma experiência memorável graças ao trabalho do elenco. A forma como Schwarz consegue reprimir a fúria de Janne, bem como o cinismo candente de seu antagonista, que arde em fogo baixo, embasbacam a audiência, que se depara com um epílogo que a deixa sem saber o que pensar, tampouco o que sentir e muito menos dizer ao certo se sente alívio ou se se entristece com o que vê. Possivelmente um dos filmes mais perturbadores já feitos, “Está Tudo Certo” foi uma estreia promissora para Eva Trobisch. Que, ao contrário de Janne, ela não se cale.


Filme: Está Tudo Certo
Direção: Eva Trobisch
Ano: 2018
Gênero: Drama
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.