O filme inteligente e subestimado da Netflix que você ainda não viu, mas deveria Divulgação / Netflix

O filme inteligente e subestimado da Netflix que você ainda não viu, mas deveria

O idealismo dos jovens chega a ser comovente. Mesmo quando francamente equivocada, essa tendência a achar que tudo na vida caminha para soluções consensuais que agradam a todos, mesmo quando os problemas em tela desafiam a lógica e se estendem indefinidamente no tempo. Sempre por excesso de confiança, vaidade, intrepidez meio alucinada, perigosa, mas tão característica, imaturidade, claro, e, às vezes também por uma ponta de má-fé, soberba e preguiça, irrigadas por larga medida de desespero, essa visão de mundo sob lentes cor-de-rosa, que distorcem a realidade e lhe dão belezas que ela não tem, fazem com que os menos experientes cometam enganos terríveis. No Brasil, 1.622.732 eleitores têm entre dezesseis e dezessete anos, número considerável e perfeitamente capaz de se liquidar uma disputa pela hegemonia nas urnas. Esses cidadãos não estão autorizados a dirigir automóveis, todavia, na prática, podem conduzir o destino do país aos braços fortes do progresso ou a aventuras que, num primeiro momento, podem encantar pelo suposto arrojo, mas que a história mostra redundarem em atraso e obsolescência inescapáveis.

De quando em quando, a Europa se vê acossada pela ameaça do totalitarismo de extrema-direita, oxigenado por quem ao menos suspeita do risco do pensamento autocrático, a despeito da cor ideológica com que se pinte. Esse ludíbrio pode passar despercebido para qualquer um, mas nos jovens tem especial poder de destruição, uma vez que corrompe arcabouços cognitivos ainda em formação e faz bater mais forte os corações especialmente suscetíveis a paixões de toda ordem. O recente “Je Suis Karl”, lançado em setembro de 2021, avança sobre o que o Velho Mundo pode ter de mais arcaico, e, o pior, essa conjuntura já foi ampla e exaustivamente testada há nem tanto tempo atrás e se mostrou falha, nascedouro de abusos e crimes. O diretor alemão Christian Schwochow tenta acompanhar o ritmo de excelentes produções germânicas com a mesma constituição de análise sociopolítica, casos do teuto-austríaco “Os Edukatores” (2004), dirigido por Hans Weingartner; “The Wave” (2008), levado à tela por Dennis Gansel; “Nós Somos Jovens. Nós Somos Fortes (2014), assinado por Burhan Qurbani, afegão de origem alemã; e “E Amanhã… o Mundo Todo” (2020), trabalho de Julia Von Heinz, os três empenhados nessa investigação inglória sobre o que pode haver de tão encantador nos radicalismos, sobretudo para gente que, em teoria, deveria estar mais aberta ao diálogo com quem pensa diversamente. O que parece o bom presságio de um movimento artístico desabridamente militante, pronto a combater a mínima escala de intenções despóticas.

As boas atuações em “Je Suis Karl” levam o espectador a se compadecer logo da dor da personagem central, cuja mãe e irmãos morrem num atentado a bomba que passa ao largo da racionalidade — e mesmo da lógica narrativa — em Berlim. É pelos olhos dessa garota, a Maxi de Luna Wedler, que o público se convence de que a intolerância principia em casa, metáfora epifânica que Schwochow conclui com a imagem de pássaro negro morto na rua, vítima dos estilhaços do ataque. Não se conhece muito da vida doméstica de Maxi, mais uma explicação para incluir o pássaro como elemento exógeno, mas paira a suspeita de que o pacote que leva a destruição a sua casa era endereçado a seu pai, Alex, de Milan Peschel. O roteiro de Thomas Wendrich ainda inclui nesse núcleo Inès, a companheira francesa de Alex interpretada por Mélanie Fouché, e os filhos gêmeos do casal, meios-irmãos caçulas da protagonista. Mesmo essa aparentemente singela elaboração cênica do diretor tem intenções ocultas. A família internacional de Maxi seria um dos alvos preferenciais de Hitler entre 1933 e 1945, sobretudo a partir de 10 de maio de 1940, momento em que Hitler invadira a França e a declarara oficialmente uma inimiga. É claro que ela não sabe de nada disso, e a partir de então “Je Suis Karl” vai enveredando também para a crônica juvenil, expondo o potencial deletério da amizade. Metido no Re/Generation Europe, um movimento fictício que, na prática, recicla mandamentos nazistas e os reveste de uma camada de civilidade — uma evidente menção de Schwochow a facções como o Movimento Identitário, que se desdobra em milícias a exemplo do Generation Identitaire francês  e o Identitaere Bewegung Oesterreichs, na Áustria —, o Karl do título, performance de Jannis Niewoehner que compete em carisma e talento com o desempenho de Wedler, absorve essa sede de justiça a qualquer custo de Maxi e a subverte para os propósitos que julga politicamente defensáveis. Não há meio disso terminar bem.

Restam no filme defeitos de algum vulto, como a solução deus ex machina que explicaria o verdadeiro motivo da revolta de Maxi, mas assim mesmo pode-se dizer que Christian Schwochow fez um bom trabalho. Ao especular sobre algumas das razões para comportamentos tirânicos que sobrevivem ao tempo, o diretor dá sua valiosa colaboração quanto a se apreender (e repelir) pensamentos liberticidas. Ainda que se arvorem na defesa da própria liberdade.


Filme: Je Suis Karl  
Direção: Christian Schwochow
Ano: 2021
Gêneros: Drama/Thriller
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.