Nada mais agradável para quem gosta de cinema do que assistir a um filme em que os atores estão mesmo brincando. O público acaba se identificando com essa leveza, se deixa levar por ela e, a partir de então, fica muito mais fácil para um diretor conseguir opiniões favoráveis sobre um trabalho, mesmo que o que se veja na tela sejam dois marmanjos como que tomados de uma idiotia crescente, galopante, que parece extravasar justamente em cima de quem está do outro lado. No caso de um deles, essa bestialidade se explica por uma causa tão ordinária quanto fundamental à sobrevivência de qualquer um; quanto ao segundo, as coisas se complicam um tanto. À primeira vista, o espectador se depara com a necessidade de emprestar-lhe sua solidariedade, ser-lhe empático, apoiá-lo realmente, também esse mais um expediente divertido, que faculta a quem assiste tomar parte no jogo, vencendo o melhor. O curioso é que, como quase sempre, malgrado se conheça a verdadeira identidade do farsante, ninguém para de torcer por ele, como se a brincadeira também se compusesse disso, dessa ilusão consciente, mas motivada por razões muito lógicas, quase palpáveis.
Patrick Brice apostou alto com “Creep” (2014). Dirigindo pela primeira vez a partir de um roteiro de sua própria lavra, Brice estabelece uma parceria de sucesso com Mark Duplass, que com toda a justiça acabaria por virar seu talismã. Se o diretor tinha alguma intenção catequizadora quanto a cristalizar algum paradigma do bom cinema faça-você-mesmo, Duplass vem para quebrar suas convicções, e o resultado é uma das produções mais desabotoadas da história do cinema, cujo naturalismo chega a escandalizar de tão lancinante. Brice tem experiência o suficiente para fazer de seu filme uma cornucópia de sequências de terror, valendo-se de uma bem empregada câmera na mão, mas é Duplass quem contrabalança o excesso de técnica com que o diretor quase prejudica o andamento dos trabalhos, e “Creep” passa de uma narrativa experimental a uma experiência de fato, em que os dois se irmanam ao passo em que começam a se digladiar num combate de vida e morte em que a plateia não se importa em oscilar entre os dois personagens.
Josef, um tiozão meio abilolado numa espécie de retiro espiritual sombrio em algum lugar remoto nas montanhas do norte da Califórnia, havia colocado um anúncio procurando um cinegrafista que se predispusesse a um trabalho bastante singular. O protagonista de Duplass diz estar morrendo de um câncer terminal, talvez lhe restem dois ou três meses de vida, e quer preparar um registro com imagens e conversas fictícias com o suposto bebê, que nunca chama de filho, mas de Buddy, “carinha”, numa tradução literal — isso talvez já fosse um bom sinal de alerta, mas o carisma magnético de Duplass faz com que todos pensemos, até certa altura do roteiro, que aquela é mesmo uma alma fragmentada, invadida pela angústia, talvez pesando por tantos pecados, mas ávida por se redimir, e com as razões mais fortes possíveis para tanto. Não demora muito — e nem poderia, uma vez que o filme dura pouco de uma hora e um quarto — e a nuvem de mistério em volta de Josef começa a se dissipar, apesar de ser meio tarde para Aaron, o produtor falido vivido por Brice, que aceita o bico em troca de mil dólares em dinheiro. Ainda que não custe a perceber que decerto aquele sujeito esquisito, que diz estar prestes a se tornar pai, mas se acha entregue a uma solidão miserável, desumana, não é como o personagem de Michael Keaton em “Minha Vida” (1993), de Bruce Joel Rubin, se compadece dele, e se enfurna na toca do lobo. Um telefonema de Angela, a irmã de Josef, determina a virada que se enunciava já há algum tempo, e se Aaron demonstrava uma postura entre constrangida e furiosa, de agora em diante terá de conter ainda mais seus ímpetos e tentar desvendar as intenções nefastas de quem se anunciava como um bom amigo.
Embora a grande qualidade do filme seja reinventar clichês, ainda que os repisando, “Creep” vai na direção de empreender e bancar escolhas que estão frequentemente atentando contra o senso comum. Um juízo apressado levaria a crer que Josef teria alguma inclinação homossexual, não sabia como dar vazão a essa tendência e resolvera inventar tudo aquilo — o que, convenhamos, é muito menos indigno do que o que vem depois —, mas Brice faz questão de esclarecer que se quer mesmo propor a discussão de um problema de ordem psicopatológica grave. Essa terapia um tanto inconvencional, obnubilada pela atmosfera fúnebre do terror, eleva o filme à uma categoria que transcende o gênero, com histórias plenas de sustos e de risadas.
Filme: Creep
Direção: Patrick Brice
Ano: 2014
Gêneros: Terror/Thriller
Nota: 8/10