Público, definitivamente, é um parâmetro subjetivo demais quanto a se avaliar o sucesso de um filme. Na verdade, a impressão que se tem é que quanto mais relevante é um filme, menos gente ele alcança o que, a depender do olhar mais ou menos pessimista de quem analisa a questão, daria azo a avaliações um tanto catastrofistas do fenômeno, mais afetas às delirantes e volúveis teorias conspiratórias. Essas tramas, cujos argumentos principais em geral pendem sem receio para conjunturas ainda mais desfavoráveis à natureza humana, apresentando um estado de conflagração incessante, guerras, miséria, fome, falta de rigorosamente tudo, encerram um exagero algo caricato, sem dúvida, mas que por essa razão mesma suscitam reflexão tanto mais urgente. Capturando a atenção do público de modo admirável, filmes com essa constituição narrativa só precisam de um pequeno voto de confiança do potencial espectador para mostrarem que dão conta do recado e são capazes de vencer com galhardia a resistência dos mais céticos. Ao fim da história, o que resta é a maravilhosa sensação de se ter empregado quase duas horas de um tempo dia a dia mais precioso na vidinha contemporânea de cada um com algo realmente sublime.
“O Livro de Eli” mesmeriza em inúmeras passagens — isso para não mencionar uma em especial, em que o personagem-título, vivido com inspiração particularmente desconcertante por um Denzel Washington na medida para o papel, se despe de sua máscara cênica. A estreia, num já distante 19 de março de 2010, consagra os gêmeos Albert e Allen Hughes como diretores invulgares, preocupados tanto com elementos técnico-estéticos como no que concerne ao enredo em si, peça de evidente iluminação graças ao texto de Gary Whitta, para, outra vez, não falar do apuro estilístico. Ninguém aguenta muito tempo sem que comece a sentir ganas de parar tudo de imediato e fazer um balanço sincero de sua vida até então, pesar os prós e os contra, ver no que acertou e no que poderia não ter errado, largar tudo e mudar de vida. Os mais sensíveis perdem a voz, os mais sensíveis ainda se flagram derramando uma e outra lágrima nada furtiva, e o filme vai tomando corpo, hermético apenas à vista mais ligeira.
Eli é um andarilho solitário e desnorteado numa América em ruínas, depois de sucessivos anos de embates bélicos por comida, terra para ser cultivada e, o mais importante, água num mundo inerte, fraco demais para reagir depois de tantos ataques. Esse homem misterioso, esquivo, soturno, a antítese mesma de qualquer profeta, de qualquer salvador que se preze, caminha para o oeste por essa paisagem assolada pelo passar inclemente do tempo, aniquilada pela ganância irrefreável do homem há trinta verões, a caminho do mar, sem saber exatamente para onde deve seguir. Seu destino é o lugar de onde foi tirado o livro que carrega consigo. Esse livro foi tudo que lhe restou na vida — e o personagem de Washington não parece disposto a abdicar de suas convicções, ainda que as circunstâncias não sejam das melhores, a começar com os inúmeros tipos que tentam subjugá-lo e detê-lo em seu propósito. O protagonista responde à altura, brandindo a única arma com que pode contar, um facão afiado com esmero, ainda que pistolas, espingardas e rifles lhe surjam eventualmente, além de bem aprendidos golpes de artes marciais, momento em que a ação do filme recrudesce. Último bastião do bem possível, Eli é frequentemente acossado por maltas de sequestradores e ladrões a bordo de motos, talvez o mais próximo da tecnologia que essa terra sem lei consegue alcançar. São esses enfrentamentos físicos, que principiam tímidos, mas que ganham espaço crescente no longa, que lhe conferem o lado popular de que se poderia ressentir, removendo também um pouco da aura filosófica do trabalho dos Hughes.
Abusando do sépia, em tons de castanho que puxam para o cinza, a fotografia de Don Burgess é outro recurso de que os diretores se valem a fim de realçar o lirismo underground do filme — e as comparações com as produções da franquia “Mad Max” são inescapáveis. Contudo, Washington e os Hughes têm o condão de imprimir estilo próprio e inventividade em “O Livro de Eli”. Do mesmo modo que o personagem central se depara com seus incontáveis antagonistas, encabeçados por Carnegie, mais uma atuação memorável para o porta-fólio de Gary Oldman, que tenta em vão corrompê-lo, Eli encontra também o apoio moral da prostituta Solara, de Mila Kunis, criada por Carnegie e a mãe, Claudia, de uma Jennifer Beals miseravelmente subaproveitada.
Albert e Allen Hughes encaminham seu filme para um desfecho que preserva a atmosfera distópica que faz de “O Livro de Eli” uma narrativa sem par, não obstante o argumento surrado. Metáfora refinada do fim dos tempos, essa é uma história de profissão de fé na humanidade, que só pode se livrar da aniquilação suprema em se respaldando nos homens certos — o que, como se nota, é muito mais difícil do que deixa parecer.
Livro: O Livro de Eli
Direção: Albert e Allen Hughes
Ano: 2010
Gênero: Ação/Aventura
Nota: 9/10