Para o bem e para o mal, organizações que peitam o Estado e impõem sua própria lei, espalhando o terror por entre cidadãos honestos vêm despertando verdadeiro fascínio em espectadores do mundo todo, e não é de hoje. Talvez o exemplo mais decisivo a esse respeito seja a trilogia “O Poderoso Chefão”, de Francis Ford Coppola, em que um gângster que enverga ternos de grife reúne em torno de si poderes que extravasam sua numerosa e consegue estender seus tentáculos por sobre um país inteiro. Claro que essas quadrilhas, caracterizadas por um senso de associação para o alcance de objetivos grandiosos que beira a paranoia, truculência desmedida na condução de seus procedimentos e uma intolerância orgânica para com aqueles que ousam ferir determinados códigos, são encontradas em qualquer parte do globo, do Japão à Colômbia, mas foi na Itália que o termo “máfia”, etimologicamente ligado à ideia de arrojo, de intrepidez, segundo um dialeto siciliano arcaico, se popularizou com mais força, sendo aplicado a partir de então para todas as situações em que se observa esse expediente.
Renato De Maria faz de “Nada Santo” o seu “O Poderoso Chefão” particular, conferindo à história a natureza de épico, desenvolvido com denodo sobre a figura do protagonista e dos personagens que o rodeiam. O Santo Russo de Riccardo Scamarcio chega a se equiparar ao icônico Vito Corleone de Marlon Brando, se não em poder ao menos em carisma e presença cênica, tornando mais uma história sobre criminosos violentos que reinam no submundo das megalópoles ao redor do globo uma peça em que se nota logo o apuro narrativo, além da direção bem conduzida de De Maria a partir de seu roteiro, coescrito com Valentina Strada e Federico Gnesini. Santo, um traficante comum na Milão dos anos 1960, conquista fortuna e prestígio conforme aprende a lidar com seus contendores, a começar pelo pai, que o mantém na cadeia quando o personagem de Scamarcio, ainda adolescente, comete um crime sem maiores consequências. Trata-se da primeira virada do enredo, quando Santo, paradoxalmente, absorve valores como hombridade e respeito à hierarquia, conceitos que a relação familiar nunca lhe havia inspirado e que evidenciam precisamente essa sua atmosfera marginal. A curta estada no xadrez lhe serve de estímulo para o ingresso nesse filão, primeiro se concentrando nos pequenos delitos que o levaram a seu batismo na marginalidade, e daí para sequestros e venda de carros de luxo cujas peças originais são substituídas por sucata até que desemboca no tráfico de drogas, passagens a que o diretor se dedica com atenção especial, encadeando sequências plenas ora de ação, ora de drama, mediante as quais o espectador conhece um pouco mais do cotidiano do vilão, casado com Mariangela, a garota doce que conheceu quando ainda eram pouco mais que crianças vivida por Sara Serraiocco, à altura da viveza do colega. Ao passo que exercita sua verve caseira, Santo assinala que a vida de mafioso é sua maior paixão, não ocultando de ninguém o apreço pela vida bandida, que imprime significado a sua jornada, antes completamente vazia, malgrado os privilégios que o luxo, sobrevalorizados por sua personalidade ostentatória, possam acabar definitivamente, da noite para o dia, e degringolar em morte.
Não é por acaso que De Maria ombreia essas duas auras de um mesmo objeto, o Santo santo, com a licença do trocadilho, e o Santo pecador, até o primeiro não resiste às investidas das inúmeras beldades que começam a orbitar em seu entorno, a mais insinuante personificada por Annabelle, de Marie-Ange Casta, trechos que rendem as boas cenas de cunho sensual que se prestam a muito mais que somente excitar a plateia. A adição de mais este componente, o sexo desenfreado, leviano, mercurial é o começo do declínio de Santo; o argumento da mulher ferida, que tudo suporta — as privações materiais esporádicas da vida financeira incerta do marido, a negligência quanto ao que sente e para com os filhos, melancolia, solidão —, mas que vira a mesa sem clemência quando seu opróbrio torna-se público, tão próprio da vida como ela é em si mesma, abre-lhe a porta de um inferno para o qual ele não estava preparado. É aí que o personagem central de “Nada Santo” percebe que toda droga, por mais potente que seja, deixa de fazer efeito algum tempo depois; nesse instante, a sensação de abandono que resta é pior que uma overdose.
Filme: Nada Santo
Direção: Renato De Maria
Ano: 2019
Gêneros: Drama/Crime
Nota: 8/10