Thriller psicológico na Netflix, consegue ser brutal, agonizante e divertido ao mesmo tempo Divulgação / Helher Escribano

Thriller psicológico na Netflix, consegue ser brutal, agonizante e divertido ao mesmo tempo

O espanhol Álex de la Iglesia é um dos diretores mais competentes do cinema contemporâneo quanto a lidar com a dicotomia entre a crueza sem-graça da realidade e o grotesco — que, não raro, descamba para o caótico — num filme. Da mesma forma que o compatriota Luis Buñuel (1900-1983), De la Iglesia permite que sua história transite sem nenhum receio entre o exagero da fantasia mórbida e a simplicidade do cotidiano no pequeno estabelecimento de uma metrópole, um dando ao outro a fundamentação retórica de que o enredo carece para se fazer verossímil, mas também onírico — neste caso, evocando o pesadelo — de um só golpe.

Quem serve de influência, por óbvio, igualmente a sofre de alguém. Lançado em 15 de fevereiro de 2017, “O Bar” remete a elementos surrealistas já incorporados por Buñuel do trabalho do artista plástico catalão Salvador Dalí (1904-1989), que por sua vez subverteu os cânones do classicismo para assinar obras cuja natureza espantosamente autoral deixavam clara sua presença. De la Iglesia parte da noção buñueliana de escandalizar, sem deixar de manter sobre seu filme mãos seguras, que não permitem que a narrativa saia do controle, como a bactéria que se propaga na sequência de crédito, um pano de fundo perspicaz quanto a sugerir uma das abordagens para o que se vai assistir pelos mais de cem minutos a se seguirem.

Tudo corre como o habitual no boteco de Amparo (de Terele Pavez, em atuação mediana), misto de bar e padaria no centro de Madrid, em que Satur, vivido por Secun de la Rosa, também dá expediente. O salão é ocupado por Nacho (do galã Mario Casas, irreconhecível); além de Andres, papel de Joaquin Climent, policial; e do argentino Sergio, de Alejandro Awada, os típicos homens de meia-idade dados a frequentar essas bibocas em seu vasto tempo ocioso. Logo chegam a dona-de-casa Trini, de Carmen Machi, um tipo nervoso que transparece o incômodo de estar ali; e Israel, o mendigo-profeta de Jaime Ordóñez. Fecha o octeto de protagonistas a dondoca Elena, encarnada por Blanca Suarez, essa, sim, completamente deslocada naquele microcosmo imundo, o próprio ambiente insinuando uma espécie de dimensão paralela largada ali por um descuido dos astros, lembrando muito a atmosfera distópica de uma Terra submetida a desmandos superiores e ocultos, à “Eles Vivem” (1988), de John Carpenter.

O que se vê pouco depois, como também mostraria Buñuel, é a imposição da desordem, aparentemente sem explicação. Um homem deixa o bar e é derrubado a tiros na calçada; o sujeito que corre até ele, a fim de verificar se ainda respira e socorrê-lo, também é alvejado. Aos que restam — Amparo, Satur, Nacho, Andres, Sergio, Trini, Israel e Elena —, só cabe, coagidos pelas circunstâncias misteriosas dos últimos acontecimentos, aguardar para ver se ficam sabendo o que de fato se passa, mas a própria imprensa ainda não tem muito a dizer, pelo que se depreende do boletim da televisão. O arco de mistério desse longo primeiro ato de “O Bar” se fecha com a descoberta do cadáver de um homem no banheiro, morto em consequência de uma overdose.

A partir de então, o roteiro de De La Iglesia e Jorge Guerricaechevaría mergulha de vez no que se propunha desde antes do enredo tomar corpo: evidenciar a paranoia que margeia a vida do mais comum dos mortais, sempre vulnerável, sobretudo com a ascensão de movimentos terroristas em todo o mundo, mas em especial na Europa, continente em que a ocorrência de imigrantes é cada vez mais nítida. Querendo ou não, o diretor toca no assunto, ainda que tangencialmente, ao dispor no elenco de um argentino, Alejandro Awada, ao passo que também insere figurantes asiáticos como Tony Lam.

A fim de investigar o que está acontecendo e dar cabo ao tormento que são obrigados a viver, parte dos personagens literalmente desce ao inferno, metendo-se numa galeria de esgoto que, à diferença de quase todos os outros filmes em que tal cenário é empregado, prima pelo senso de veracidade — e frise-se que Amparo, a dona do bar; Satur, seu funcionário; Andres, o homem da lei, a autoridade, e Sergio, o estrangeiro, permanecem no espaço em que a ação se desenrolava, resguardados, até que sucede um outro evento, reviravolta com que o diretor reforça o argumento de ninguém pode se considerar a salvo, tampouco os poderosos da trama.

As performances bem conduzidas por Álex de la Iglesia fazem de “O Bar” pouco mais do que se propunha. O filme cumpre bem a função de entreter, conseguindo ainda abrir flanco para discussões mais e mais urgentes sobre assuntos como tolerância, a efemeridade da vida, a necessidade de se contornar diferenças, mormente em circunstâncias sinistras. A guinada do personagem de Jaime Ordóñez, no encaminhamento para o desfecho com notas filosóficas singelas — personificadas pelo semblante inconsolável da Elena de Blanca Suarez —, já teria valido toda atenção dispendida à caudalosa história.

A despretensão de “O Bar”, mesmo ao se desdobrar sobre assuntos tão doídos, é o que prende o espectador até a derradeira cena, cuja força deixaria Buñuel, Dalí e todos os outros loucos da arte, o melhor remédio para a insânia do mundo, orgulhosos.