Filosófico e brutal, filme de ação metafísico e delirante na Netflix vai te deixar desorientado Jessica Forde / Universal Pictures

Filosófico e brutal, filme de ação metafísico e delirante na Netflix vai te deixar desorientado

Já não se fazem mais mocinhas como antigamente — e isso é uma ótima notícia. Se antes os grandes papéis de heróis salvadores da humanidade, aptos a arriscar o pescoço inúmeras vezes ao longo de um mesmo filme em nome do que se considera a missão mais nobre que alguém poderia ter, eram prerrogativas eminentemente masculinas, de uns tempos para cá mulheres também têm se destacado na invejada (e disputada) posição de protagonistas dessas histórias, ampliando exponencialmente seu arco de popularidade. Que o diga Scarlett Johansson, a bombshell do momento já faz alguns anos, transitando galhardamente de personagens de inegável apelo dramático em produções ditas cabeça, a exemplo de “História de um Casamento” (2019), dirigido por Noah Baumbach, ao arrasa-quarteirão “Viúva Negra” (2021), de Cate Shortland. Em “Lucy” (2014), a atriz continua a se provar uma intérprete muito acima da média e acima também de qualquer suspeita, que não permite que o espectador se deixe tomar por um eventual preconceito, seja de que lado esteja nessa contenda.

O diretor francês Luc Besson parece ter escrito o roteiro de seu longa pensando em Johansson desde a primeira hora. Aqui, logo na sequência de abertura, sua personagem-título já diz a que viera, num bate-bola estimulante com Richard, de Pilou Asbæk. É por meio desse breve introito que o público se acerca do conflito que passará a fazer parte da vida de Lucy até o desfecho, morbidamente poético. Os dois mantêm uma conversa que oscila primorosamente entre descontraída e tensa a respeito de uma mala que o coadjuvante carrega, lacrada e cujo conteúdo ninguém conhece, nem mesmo o senhor Jang, o pálido antagonista vivido por Choi Min-sik. É precisamente a Jang que Richard tem de se dirigir a fim de entregar o volume e botar a mão na recompensa de mil dólares, trabalho fácil como mastigar água. Mas as coisas não são tão objetivas assim. Por já ter se metido em confusões anteriores com os gângsteres chefiados pelo chefão da máfia taiwanesa, o personagem de Asbæk se esforça para convencer a ex-namorada a ir no seu lugar. Depois de alguns minutos em que Lucy desconstrói todos os argumentos de Richard, ela acaba aceitando lhe prestar o favor, recebendo, sem ter pedido, quinhentos dólares em agradecimento. Ela entra, caminha até o saguão e pede para ser recebida por Jang, enquanto Besson é competente em fazer a atmosfera de suspense se firmar logo nessa primeira abordagem. O que se vê a seguir provoca na audiência o primeiro de muitos outros choques, e o que se desenrola do encontro de Lucy com o vilão pouco crível vivido por Choi Min-sik e de partir o coração pela crueldade. É nesse contexto que o diretor faz com que sua personagem central seja tomada da justa ira que passa a ser o lado mais forte de sua personalidade. O que acontece com ela desperta em quem assiste um senso de empatia imediato, ao passo que também se presta a conduzir o espectador para dentro de seu drama, literalmente. Como há males que vêm para o bem, ou quase isso, é graças a essa experiência medonha que Lucy torna-se aquela heroína, agora mais para anti-heroína, de que se falava no começo, dotada de predicados que fazem-na uma criatura sobre-humana. Se um indivíduo comum é capaz de gozar de apenas 10% do potencial de seu intelecto, conforme o doutor Samuel Norman de Morgan ressalta na palestra que ministra a um anfiteatro cheio — lance pouco criativo, mas sem dúvida útil a fim de que se compreenda aonde Besson deseja chegar —, o híbrido de homo sapiens e um mecanismo que encadeia mil bits de informação por segundo a que Johansson dá vida alcança todos os 100% sem muitos obstáculos, ainda que sofra consequências severas por deixar de ser humana, demasiado humana e passe à mera condição de uma máquina esquisita.

Além do thriller filosófico hi-tech propriamente dito, Luc Besson reserva espaço em seu filme para um respiro romântico — o respiro romântico possível num filme como esse, que fique claro —, entre Lucy e o policial Pierre del Rio, que a ajuda no segundo ato, interpretado por Amr Waked, e elucubrações sobre a evolução do gênero humano, questionável, diante de todos os absurdos que perpetramo-nos uns aos outros e ao ambiente, com a citação à Luzia, ou Lucy, o primeiro indivíduo da espécie, uma mulher. Sua Lucy também é a primeira dessa modalidade de vida, mas exatamente por ser tão perfeita, incapaz de encontrar quem a corresponda em sua completa falta de defeitos, perece. Para resistir a esse mundo, Lucy teria de esquecer muita coisa, a maior parte do que vivencia, mas ela só se lembra, e se lembra. É esse o seu mal.


Filme: Lucy
Direção: Luc Besson
Ano: 2014
Gêneros: Ação/Drama
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.