O filme genial que está escondido na Netflix e você certamente não assistiu (do mesmo diretor de Parasita) Distribuição / Showbox

O filme genial que está escondido na Netflix e você certamente não assistiu (do mesmo diretor de Parasita)

Monstros podem ser muito mais didáticos que séculos de filosofia. Essa é a impressão que se tem ao se assistir a certos filmes de terror, sobretudo se for coreano. Não é de hoje que a Coreia do Sul, a pouco e pouco, do jeito oriental — e mais adequado — de se fazer as coisas, apresenta filmes produzidos com qualidade invulgar e que abordam temas os mais diversos, de dramas familiares a ataques de zumbi e outros monstros que infernizam a vida da humanidade na telona. E em se tratando de Coreia do Sul, nada é por acaso. Sempre há por trás de cada uma dessas produções sul-coreanas o propósito de alertar o público, não acerca da existência de seres teratológicos à espreita, prontos a devorar seres humanos incautos, por óbvio, mas de deixá-lo, no mínimo, ressabiado e mais sensível a algumas questões, essas, sim, capazes de arrasar cidades inteiras, alastrando-se mundo afora como uma grande praga incontrolável, e o pior, sem fazer barulho. Existem maneiras relativamente simples de combatê-los, e mesmo muita gente disposta a tal; o problema é que esses nossos algozes encontram logo um jeito de continuar seu trabalho sujo, com a anuência (e a ajuda) de agentes duplos, homens que deveriam, por natural, lutar pela sobrevivência de sua espécie, mas movidos por interesses impublicáveis, jogam ainda mais água no moinho do caos.

“O Hospedeiro” (2006) abre retratando uma base militar dos Estados Unidos na Seul do ano 2000. A cena é ambientada num necrotério, no qual dois homens, um sul-coreano e um americano mais velho conversam enquanto manipulam os instrumentos correlatos àquele lugar. Esse americano, participação afetiva de Scott Wilson, verifica que os frascos de formaldeído, o formol que todos conhecemos, estão todos cobertos de poeira. Talvez o homem sofra de algum distúrbio, talvez seja um dos tantos maníacos por limpeza a infestar o mundo, porém o mais certo é que seja mesmo um sádico. Sem nenhum drama de consciência, o veterano ordena ao outro, que contesta, que descarte tudo na pia, sabendo que a infinidade de substâncias tóxicas que compõem o formol vai parar no rio Han, a principal fonte de água potável da capital. A sequência, chocante pela singeleza e pelo primarismo do personagem de Wilson, torna-se verdadeiramente escandalosa ao se revelar baseada num evento real. Em 2000, o americano Albert McFarland, agente funerário civil que servia na instalação do Exército dos Estados Unidos em Yongsan, bairro de Seul ao norte do Han, mandou que seus subalternos despejassem 120 litros de formaldeído no encanamento do necrotério. Malgrado o esgoto fosse submetido a duas estações de tratamento antes de chegar ao curso do rio, o episódio gerou comoção, com fortes consequências antiamericanas.

Em meio ao intrincado pano de fundo socioambiental, está a não menos confusa família Park. O patriarca, Park Hee-bong, tem um quiosque à beira do Han. O personagem de Byun Hee-bong é pai de Park Nam-il, o filho responsável vivido por Park Hae-il, e de Park Gang-doo, o protagonista interpretado por Song Kang-ho, que, desempregado, deveria ajudar o pai com a clientela, mas está sempre dormindo sobre as mercadorias no balcão. A filha de Gang-doo, Kang-Du Hyun-Seo, é criada meio displicentemente, e sua intérprete, Ko A-Sung, deixa transparecer um fio de mágoa, na exata medida. Todos acompanham o sucesso de Nam-Joo, a arqueira profissional vivida por Bae Doo-na, de longe, pela televisão, que toma parte em mais um campeonato nacional. Enquanto cada um tenta ganhar a vida a seu modo, um organismo multicelular se desenvolve sob a forma de um peixe de dimensões pantagruélicas, geneticamente modificado. Dono de um apetite voraz, esse terror subaquático sobe à superfície, onde cria patas, e passa a atormentar a população de Seul, a começar, claro, pelos Park. A tibieza das autoridades no trato da questão faz de Gang-doo, antes um pária desprezado pela própria família, o herói possível. Inclusive na defesa de seu clã.

Por incrível que possa parecer, tudo em “O Hospedeiro” é bastante sutil. Não obstante a queda do ritmo lá pela metade — o prolongamento de algumas subtramas, como a reação da comunidade internacional à ameaça originada da Coreia do Sul é, definitivamente, o grande defeito do filme de Bong Joon-ho, que encabeça uma equipe de mais três roteiristas —, a história, inventiva, bem conduzida e apurada tecnicamente, merece um olhar mais atento. Como quase tudo o que é feito naquele país do outro lado do globo, também em “O Hospedeiro” é necessária atenção redobrada, a fim de separar o joio dos chavões da joia de suas metáforas.


Filme: O Hospedeiro
Direção:
Bong Joon-ho
Ano: 2006
Gêneros: Terror/Ação
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.