Ainda mais vulnerável na primeira infância, o ser humano depende de cuidados específicos para manter-se vivo. Aos poucos, aquela criança pequenina, frágil, indefesa adquire força e estímulos o bastante para reagir às tantas interferências da vida extrauterina, observando instintivamente e absorvendo os códigos necessários para se reconhecer como parte do novo grupo que encontra num ambiente de todo desconhecido. Conforme se localiza nesse outro meio, muito mais hostil, em terá de lutar pela atenção de quem o gerou, esse indivíduo em formação entende que é apenas a menor peça de uma engrenagem maior, a família, que por seu turno insere-se num conjunto infinito de mecanismos semelhantes, que num crescendo vai da comunidade local ao bairro, depois à cidade, em seguida ao estado, ao país, até alcançar a escala planetária. Nesse estágio, já com certa idade, mas ainda imaturo para vivenciar todas as experiências que definirão como um cidadão, essa pessoa depara-se com sua irrelevância abissal frente à imensidão do universo, e se maravilha, e se desespera.
Na cena inicial de “O Filho Protegido” (2019), o diretor argentino Sebastián Schindel alude ao começo de tudo, em si dotado de suas muitas complexidades. Os protagonistas, o pintor Lorenzo, está na cama com a mulher, Sigrid. O personagem de Joaquín Furriel, em mais uma performance furiosa, no segundo casamento, tenta restabelecer seus sentimentos ao lado do tipo vivido por Heidi Toini, igualmente talentosa, depois de um divórcio especialmente atribulado. O sexo por si só já renderia a elaboração de uma pletora de sequências; a natureza do ato sexual, insuficiente quanto a preservar o interesse dos parceiros se visto em separado, e, contudo, fundamental a fim de que se encontrem esses pontos de contato em esferas mais abrangentes da vida a dois, é perigosamente dúbia. Duas pessoas, adultas e donas de suas vontades, até podem dar a impressão de que são inestimavelmente felizes se o desempenho fisiológico da consumação do amor é satisfatória, mas estarão apenas se deixando seduzir por um ideia notadamente enganosa e de fácil contestação. Quantas vezes não nos interessamos por alguém, investimos na possibilidade mesmo que remota de um encontro, primeiro meramente social, civilizadamente pudico, casto muitas vezes, já visando a privar da intimidade máxima daquela pessoa, leia-se o sexo, mas já sabendo que a relação nunca há de evoluir para níveis mais sublimes? Só a confabulação desse processo já é um expediente sem dúvida prazeroso, mas isso teria alguma coisa a ver com felicidade? Decerto que não, até porque a realização amorosa, amar e ser amado, dar e receber amor, passa obrigatoriamente por transcender a satisfação física do sexo. E isso é só o começo.
A adaptação de Guillermo Martínez e Leonel D’Agostino para o romance “Una Madre Protetora”, de Martínez, explora os descaminhos da relação amorosa de Lorenzo e Sigrid, extensíveis a qualquer um que já tenha se apaixonado de verdade, e baseando-se na intensidade desse sentimento, viu-se dominado pela premência de agarrar com unhas e dentes a chance de constituir uma família feliz, com tudo a que se possa ter direito, com a pessoa que encerra a nobreza da intenção — ou ao menos sonhou passar por isso. Lorenzo está certo de que Sigrid é a mulher da sua vida (apesar de já ter chegado a essa conclusão antes, com outra); Sigrid dá indícios de que sente o mesmo quanto a ele, mas à medida que a história avança tem-se claro que seu propósito é diverso, malgrado se ligue diretamente à vida com o pintor. Ela engravida, e nunca fica explícito se, apesar de amá-la e ficar emocionado, o marido quer mesmo ter um filho com ela. Antes mesmo do nascimento da criança, Sigrid, bióloga de formação, conduz ela própria o pré-natal, ministrando-se remédios sem prescrição médica e seguindo dietas supostamente saudáveis sem orientação de profissionais habilitados para tal. A entrada em cena de Gudrunn, a típica governanta alemã, controladora e rabugenta, vivida por Regina Lamm, alimenta em Sigrid sua inclinação psicótica. Prestando uma assistência exageradamente dedicada à mulher de Lorenzo, Gudrunn era a centelha que faltava para que se acendesse a fogueira de loucura da protagonista, o que bota o enredo de “O Filho Protegido” num movimento similar ao que se observa em boa parte da obra de Pedro Almodóvar, certamente o cineasta que mais se devotou ao assunto. Em “Mães Paralelas” (2021), Almodóvar, bem como Schindel, confere à maternidade a aura de loucura, ainda que no trabalho do espanhol ela se travista de normalidade e ganhe as cores que definem seus filmes e o caracterizam como alguém disposto a sustentar a mensagem de que por mais dramática que a situação de suas mães se apresente, sempre haverá margem para contemporizações. Contrariamente, “O Filho Protegido” cresce mesmo é na escala de tensão entre seus personagens, raciocínio que justifica a principal guinada da narrativa, momento em que surgem Julieta, a advogada de Lorenzo interpretada por Martina Gusman, e seu marido Renato, personagem de Luciano Cáceres.
Schindel se vale da edição de Alejandro Parysow, indo e vindo no tempo por meio de flashbacks suaves, mas que já são suficientes para que se levante o questionamento central do longa: quem tem razão, ou quem é o louco? A fotografia de Guillermo Nieto, igualmente sutil, enaltece as cores primárias nas telas lúgubres de Lorenzo, uma pista para se penetrar mais fundo nos meandros de sua personalidade. No desfecho, altamente enigmático, é justamente a personagem de Gusman a se deparar com o mistério que insinua uma explicação para o desequilíbrio de Sigrid, talvez a grande vítima de “O Filho Protegido”.
Filme: O Filho Protegido
Direção: Sebastián Schindel
Ano: 2019
Gênero: Suspense
Nota: 9/10