Premiado em Berlim, drama fantástico é um dos filmes mais subestimados da biblioteca da Netflix

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O tempo, conceito relativo, como ensina Einstein, é confrontado com o espaço, mais palpável, e os dois parecem coexistir em harmônica interdependência, ao menos no plano físico. Manifestação artística transcendental por excelência, o cinema não se sente obrigado a observar essas formalidades científicas, e nem deveria. Deslocando-se entre mundos que nunca hão de se encontrar na fria realidade, personagens da ficção se valem de privilégios que nós, os de carne, ossos e sonhos, podemos apenas invejar. De “Interestelar” (2014), dirigido por Christopher Nolan, a “Meia-Noite em Paris” (2011), de Woody Allen, passando pelo divertido “Quero Ser Grande” (1988), levado à tela por Penny Marshall, e, por óbvio, o clássico “De Volta para o Futuro” (1985), de Robert Zemeckis, o argumento da viagem no tempo rende passagens memoráveis. Poder-se-ia pensar que, de tão usada, a ideia tivesse se esgotado, mas “nunca” é uma palavra peremptória demais para uma arte assaz dinâmica como a de fazer filmes e, quando menos se espera, aparecem novas (e brilhantes) perspectivas acerca de um tema a que já se aludira recorrentemente.

O título pomposo, quiçá engraçado, e decerto enigmático de “Chico Ventana Também Queria Ter um Submarino” (2020) não diz quase nada sobre de que trata o filme do uruguaio Alex Piperno, também roteirista do longa. A leitura das sinopses, curiosamente, também não, o que configura duas possibilidades: ou o potencial espectador reveste-se de uma medida de arrojo e vai em frente, temendo desperdiçar hora e meia de seu precioso tempo, ou nem isso, fica ressabiado e já o descarta de vez. Quem optar pela primeira há de se deparar com uma história difícil, sem dúvida, mas, também por isso, sedutora; aos pragmáticos da segunda infeliz categoria, o alento de preservar noventa minutos, mas perder, talvez, uma vida inteira sob um ponto de vista renovado, sem nenhum exagero. A trama, impossível de ser resumida em magras linhas, remete a fantasia, a sonho, mas principalmente à vontade de mudança, encarnada por uma ideia imanente ao enredo, ancorado em três personagens bastante distintos entre si, todavia saídos de uma matriz comum.

Composto por tipos estranhos, que parecem à procura de seu lugar no mundo, ao passo que, no fundo, até gostam dessa aura de marginalidade, o filme narra as desventuras do tal Chico Ventana que encabeça a alegoria de Piperno, o tripulante subalterno que trabalha num cruzeiro de luxo que se desloca pela Patagônia, Terra do Fogo e de lendas. Chico, excelente composição de Daniel Quiroga, encontra um portal mágico sob o convés do navio. A misteriosa passagem abre caminho para o apartamento de Elsa, de Inés Bortagaray, onde o protagonista passa a se esconder, observando a moça de perto, quase sem ser notado. No momento em que os dois se conhecem, Chico conta sobre o túnel do tempo que os une, e a personagem de Bortagaray também começa a se transmutar para a embarcação, na esperança de falar com o novo amigo, sem, achá-lo e, claro, da mesma forma passando praticamente despercebida, vista apenas por um imediato, por alguém que estava ali a trabalho, isto é, para servir os outros, a adverte de que não pode permanecer em determinada área, exclusiva à tripulação. A terceira base desse tripé é o camponês Noli, vivido por Noli Tobol, que se depara com uma cabana envolta em segredo nas Filipinas, o que mobiliza os nativos a realizar cerimônias místicas em que se evocam os espíritos da floresta a fim de, dessa maneira, erradicar o que consideram uma maldição. Nesse ponto, o diretor dá uma guinada na narrativa e por meio da exibição desses rituais, em que homens se reúnem em volta de uma fogueira e sacrificam bichos como galinhas e porcos, levanta sua própria contra-argumentação quanto ao conceito de integração do segmento anterior. Se Chico e Elsa anseiam por se conhecer um ao outro — e resta a sugestão de um envolvimento romântico entre os dois, nunca consumado, ainda que partilhem os lençóis numa sequência —, Noli chega às raias da insensatez ao se desfazer de seus poucos bens desde que garanta poder se conservar isolado de um mundo perverso, em que se percebe apenas objeto da curiosidade da dita civilização. Rompendo a corrente, o personagem a que Tobol dá vida (e a expressão nunca fez tanto sentido) torna esse labirinto ainda mais inexequível, deixando claro que talvez seja meio tarde esse desejo do homem contemporâneo de retomar o relacionamento com a natureza e os povos primitivos, seus combalidos guardiães.

Crítica ao estilo de vida tóxico de gastar e consumir como se não houvesse amanhã, ao mesmo tempo que deixa a mensagem do necessário resgate da noção de um capitalismo mais consciente, “Chico Ventana Também Queria Ter um Submarino” usa e abusa de enquadramentos que emolduram selva e mar a fim de inspirar em quem assiste alguma emoção e, o principal, o desejo, a ânsia mesma por outro mundo, preservando-se o que ainda sobrou deste. Tido por “experimental”, o filme de Alex Piperno cala fundo em quem sente que há que se tomar alguma atitude quanto a manter esse espírito da Terra como a verdadeira casa de todos, que nunca deveria ter morrido.


Filme: Chico Ventana Também Queria Ter um Submarino
Direção: Alex Piperno
Ano: 2020
Gênero: Fantasia
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.