O cinema tem produzido faroestes de tudo quanto é tipo: faroeste gay, negro, feminista. O mais americano dos gêneros cinematográficos parece sempre comportar uma ousadia a mais, como se os westerns fossem um balão de ensaio para os formatos que sempre se insinuaram ao longo da história da indústria de filmes, mas que tinham de se submeter ao tempo — ou ao esquecimento. Essas tramas têm saído do limbo aos poucos, tomando o cuidado de não ferir as suscetibilidades de ninguém, e este decerto é um dos segredos para sua aceitação nos mais diversos estratos sociais. Fica a impressão de que mudar, encampar ideias nunca testadas antes é fácil, ao passo que se pode supor que esses filmes sempre estiveram ao alcance da mão, bastando ao aventureiro mais destemido esticar o braço e colhê-los. Ainda que assim fosse, sobraria a parte mais árdua do processo: conduzir as massas rumo à transformação cívica necessária a fim de enxergar tais produções como algo absolutamente natural, ícone de um país que dá às pessoas chance real de se incluírem nas múltiplas etapas da democracia mediante a arte.
O espectador se acostuma aos poucos à figura de Mads Mikkelsen como estrela de um western, mas não é preciso muito esforço para se compreender que “A Salvação” (2014) é um filme dos mais fluidos já produzidos. É inegável que o trabalho do dinamarquês Kristian Levring tem um componente de pastiche que chega a exasperar em certos momentos, mas o diretor é capaz de superar uma possível ojeriza inicial do público e conferir identidade ao enredo. O roteiro, de Levring e Anders Thomas Jensen, apresenta Mikkelsen como Jon, um dinamarquês que vai fazer a América em 1864 e volta ao país de origem, sete anos depois, para buscar a mulher, Marie, interpretada por Oh Land, e o filho, Kresten, de Toke Lars Bjarke. Voltando ao argumento da provável rejeição à história, Mikkelsen consegue fazer de Jon um tipo genuinamente árido, como se a permanência nos rincões do oeste dos Estados Unidos tivesse removido todo o verniz de elegância natural do personagem, evidenciada pela próprio physique du rôle do ator. Desde o primeiro momento, o protagonista é visto como um homem durão, nada do requinte do personagem-título da série “Hannibal”, em que seus traços finos são parte importante na construção do papel. À medida que o mote principal de “A Salvação” se torna menos evanescente e a trama se cristaliza, fica claro logo no introito, quando os três se encontram numa estação de trem — um clichê inesgotável do cinema em situações como essas —, sendo que Jon sequer havia estado presente ao nascimento de Kresten, que teria sido impossível ao anti-herói de Mikkelsen sobreviver num cenário tão hostil (ainda que ornado pela beleza agreste da topografia rochosa, realçada por um sol especialmente dourado que banha toda a paisagem de um ouro velho fantasmagórico) sem que tivesse feito algumas adaptações prementes a seu modo de conceber a vida. Apesar de ter nascido bem longe dali, Jon é a encarnação mesma do caubói americano, acertadamente se apropriando da rudeza da gente daquele lugar, mas conservando sua frieza escandinava. Essa personalidade híbrida é o que lhe tem permitido resistir, inclusive durante a viagem de volta, em que ele, a mulher e o filho são sujeitados à presença de Delarue na mesma cabine. E o antagonista, vivido por Jeffrey Dean Morgan, muda a vida dos três ali mesmo.
É a partir dessa reviravolta que Levring passa a conduzir a história, um tanto formulaica, plenas dos tantos clichês vistos e revistos em uma infinidade de produções congêneres, mas ainda assim com lances de fazer inveja a Clint Eastwood, tal a despreocupação com julgamentos e patrulhas. A coragem de Jon por ter enfrentado a tirania de Delarue custa-lhe a liberdade, mas ele não é o único a sofrer as consequências. Furioso, o vilão impinge à cidade um castigo particularmente desumano, que só mesmo gente de fora das panelinhas, como o diretor e Jensen, poderia bancar. É esse grau de perversidade que os dois imprimem aos personagens de “A Salvação”, e o falso mocinho de Mikkelsen não fica de fora. O intérprete de Jon se vale da dubiedade moral do meio em que se inserira para justificar seu comportamento selvagem, sem, no entanto, apelar à compaixão de ninguém: o protagonista também transforma-se num tipo vilanesco, raciocínio óbvio numa das cenas finais, instante em que o personagem, vingado, nada afeto à imagem de salvador que dele esperavam, toma o que considera seu por direito, acompanhado de Madelaine de Eva Green, uma musa nada convencional. Homenagem à altura do melhor do faroeste, “A Salvação” tem seus acertos e erros, mas tem, antes de mais nada, personalidade.
Filme: A Salvação
Direção: Kristian Levring
Ano: 2014
Gêneros: Faroeste/Drama
Nota: 9/10