Romance de Nara Vidal aborda relação traumática entre mãe e filha

Romance de Nara Vidal aborda relação traumática entre mãe e filha

Internado num sanatório para tratar a tuberculose que iria matá-lo, Franz Kafka decide escrever uma carta ao pai numa espécie de acerto de contas. O registro franco, de exposição de sentimentos e pensamentos íntimos, detalha a relação conturbada com o comerciante Hermann Kafka, um homem autoritário, a quem o escritor tcheco atribui seus medos e tendência à solidão. Nas palavras do filho oprimido, é possível notar um amargor profundo pela figura paterna, nociva a ponto de condenar sua conduta social e relacionamento amoroso, mas também um aceno de reconciliação. A certa altura do texto, editado postumamente com o título de “Carta ao pai”, o autor desabafa: “Esse seu modo usual de ver as coisas eu só considero justo na medida em que também acredito que você não tem a menor culpa pelo nosso distanciamento. Mas eu também não tenho a menor culpa. Se pudesse levá-lo a reconhecer isso, então seria possível, não uma nova vida — para tanto nós dois estamos velhos demais — mas sem dúvida uma espécie de paz; não a cessação, mas certamente um abrandamento das suas intermináveis recriminações”.

Eva, de Nara Vidal (Todavia, 112 páginas)

“Eva”, romance mais recente de Nara Vidal, é, de certa forma, uma contraparte (até onde se sabe) ficcional da epístola de Kafka. Igualmente há o elo conflituoso de descendência, mas, no livro da autora mineira, o alvo do relato é a filha, uma mulher desterrada e reclusa que visita sua infância e juventude através das cartas enviadas pela mãe. É nas frases de um tempo morto, carregadas de julgamento e censura, que a personagem encontra acessos para lembranças que explicam sua dependência afetiva de uma figura materna controladora, bem como o impacto dessas reprovações numa vida adulta marcada por abusos e abandonos. Indo e voltando do passado com essa voz aos ouvidos feito um espectro de culpa, ela examina suas escolhas, levantando dúvidas sobre o merecimento das punições do destino.

A primeira delas antecede seu arbítrio: o nome escolhido pelo pai e repudiado pela mãe por representar o pecado, Eva. Por conta dessa “maldição”, a criança que ventava liberdade pelas ruas da cidade no interior de Minas era tida como que com “o diabo no corpo”. Passou a meninice sob rezas e benzimentos, entrando pela adolescência sendo malfalada e repreendida por conta do tamanho da sua saia, do tecido da blusa que marcava os peitos. As tentações da puberdade eram, algumas vezes, refreadas com violência. A mãe trilhava a pedagogia da agressão, usando o argumento do castigo físico para o bem. “(…) ela me batia para que eu parasse de ser mimada, uma ingrata (…) Quando os convidados foram embora, ela me abraçou (…) e me disse o quanto eu estava linda, a mais bonita da cidade, e o quanto me amava”, a narradora descreve um episódio.

Tal comportamento paradoxal aparece também numa das primeiras cartas: “Se você se chamasse Rita ou Tereza, eu sei que Deus não teria tanta fúria por mim. Maldito o seu nome, minha filha. (…) Sua alma é aberta para malfeitos. Precisamos estar atentas. Estarei sempre ao teu lado quando o diabo se aproximar. Confie em mim e em Deus. Com amor sempre, sua mãe”. As consequências na construção da personalidade da filha são contrariamente proporcionais ao peso das opressões. Eva cresce guiada pelo desejo carnal que, mesmo casada e com um filho, não se contém em serenar. Tem amantes, vive sem amarras. E o custo, embora se coadune às observações nas cartas, quase que como premonições ou praga, não provoca ressentimento ou ódio na personagem. “Minha mãe, quando não me julgava, me encheu de amor, cartas, muitas cartas, e por isso eu capenguei, desde que morreu. Tinha enorme cuidado por mim e eu acabava me acostumando com tanta palavra e orientação. O carinho era tanto, a atenção era tão intensa, o zelo era tão firme, que chegava a ser uma tremenda falta de respeito”, declara.

Explorar essa ambiguidade é o que embala o argumento central, e também evidencia um equilíbrio entre domínio técnico e capacidade criativa. Não é fácil criar personagens tão complexas ao mesmo que mergulhadas num repositório de pesares sem cair na caricatura, e Nara Vidal acerta em não tratá-las como meras antagonistas, mas ao extrair do antagonismo os aspectos dúbios que as unem. É uma literatura de tato, um trabalho delicado que admite interpretações para o que está explícito, e direciona a mirada do leitor para o que está implícito: os hematomas cobertos pela roupa, as agulhas de tricô embebidas em álcool. A autora também trabalha com elementos simbólicos como o sangue e os cravos representando o luto. Características que tornam o enredo sensivelmente feminino na mesma medida que crítico, sem usar da panfletagem ou do manifesto.

Eva faz parte de um corpo de mulheres que sofreram abuso na infância e fugiram, buscando novas possibilidades para o futuro, quando voltam a ser abusadas. Retrosseguindo, ela enxerga seu drama e a marca da violência, mas também uma linhagem que se anula num ciclo irrefreável movido pela religiosidade e pelo moralismo. Por isso, ao se recordar da mãe bebendo e dançando como se tivesse “o diabo no corpo”, um traço de condescendência verte em si ao realizar que sua repressora foi obrigada a reprimir o cio pela vida. E assim, tal como Kafka, um aceno de reconciliação tenha cabimento na compreensão da obediência versus rebeldia contra a sucessão de afogos.

Soam dos bastidores da História que “Carta ao pai”, escrito em 1919, teve como móvel principal uma discussão provocada por Hermann Kafka ao desqualificar a noiva de seu filho em razão desta ser de um nível abaixo de sua condição social. Um século depois, Nara Vidal usa de seu romance como uma espécie de cromo de projeção para ilustrar as punições que sofrem as mulheres que decidem transgredir os padrões, lutar por seus direitos, contrariar o classismo, defender bandeiras, amar quem quiser, ser feliz.


Livro: Eva
Autora: Nara Vidal
Editora: Todavia
Páginas: 112 páginas
Avaliação: 4/5