Humano, triste e brilhante, filme premiadíssimo da Netflix é um tesouro escondido que precisa ser descoberto pelo público Divulgação / Netflix

Humano, triste e brilhante, filme premiadíssimo da Netflix é um tesouro escondido que precisa ser descoberto pelo público

A luta pela vida exige calma. Um passo de cada vez, cálculo, método, tudo o mais friamente calculado, o mais previamente estudado, como se se temesse despertar do sono profundo a besta do ressentimento que habita todos nós em lugar mais recôndito ou menos. Engole-se o choro, passa-se por cima de emoções as mais fundamentais, tão fortes que já integram o mais humano que pode haver em alguém.

“Inspire, Expire” (2018), da diretora islandesa Ísold Uggadóttir, explora muito bem esse sentimento, o da necessidade de se fazer notar, de desejar pertencer ao lugar em que se escolhe viver — ou aquele no qual a vida tem chances um pouco menores de fracassar definitivamente —, mas segue mais além. A visão espiritualista de Uggadóttir, com facilidade invejável de se concentrar apenas na alma de seus personagens, como se o meio em que estão inseridos fosse mero detalhe na história, causa espécie. Não é por acaso a fotografia plena de cinza e um azul esbranquiçado, leitoso, de Ita Zbroniec-Zaj, e pode-se arriscar dizer que mesmo o roteiro da própria diretora tomar corpo na gélida e enigmática Islândia não é coincidência ou simples comodidade. O cenário de fim de mundo da Península de Reykjanes, na porção meridional da ilha-nação, inicialmente descolado do enredo, alinha-se a narrativa lentamente, como se se tornasse o quarto protagonista.

A Lára de Kristín Thóra Haraldsdóttir é um dos retratos da perdição para que pode descambar a vida de uma pessoa, mesmo num paraíso à primeira vista inofensivo, malgrado o clima pouco amistoso e tempo permanentemente instável. A personagem de Haraldsdóttir, uma mulher que tenta se reerguer depois de afundar no vício em drogas, consegue, afinal, um estágio remunerado como guarda de fronteira, supervisionando passaportes de quem pretende deixar a inóspita Islândia. Como se a vida estivesse sempre a lhe cuspir na cara seu desprezo, a oportunidade de retomar o leme da própria vida chega um pouco tarde. Lára já atravessa aquela lastimável fase em que um níquel a mais ou a menos implica em ter ou não o que comer. De tão emblemática, uma sequência em particular poderia sintetizar que mensagem se pretende transmitir em “Inspire, Expire”. Na fila do caixa num supermercado, na hora do pagamento, vai se desenhando um conflito que Uggadóttir conduz de maneira a sempre manter o conflito pendurado por um fio muito delicado, prestes a rebentar a qualquer instante. As compras somam 8.120 coroas; Lára quer pagar 6.150 no cartão e o restante em dinheiro. Até aí, nada de mais, não fosse o constrangimento de que, depois de quase se virar do avesso à cata de moedas, a conta nunca fecha, a ponto de um estranho se oferecer para quitar o débito, o que Lára, claro, recusa prontamente. Uggadóttir volta a mencionar essa dignidade sobrevalorizada de sua anti-heroína quando a personagem, uma composição nitidamente pensada de Haraldsdóttir, encontra resquícios de cocaína e um pote com pílulas suspeitas num móvel do banheiro, ameaça despejar tudo no vaso sanitário, mas torna a guardar a droga. Do lado de fora, Eldar, o filho vivido pelo talentoso Patrik Nökkvi Pétursson, chama por ela, como se pressentisse, feito o gato Músi, que a morte ronda. Em tamanha humilhação não sendo o bastante, o caso fugaz com a mãe de um colega de Eldar resta apenas sob a forma de uma pálida lembrança, porque se depreende, outra vez, uma mal disfarçada repulsa por parte da mulher.

Por essas e outras é que Lára faz do estágio na imigração seu novo propósito de vida. Como se estivesse sendo mesmo testada, não cai na armadilha preparada por um colega, que aponta indício de falsificação no passaporte da franco-guineense Adja, de Babetida Sadjo, que deseja fugir para o Canadá junto com a filha e a irmã, que embarcam. A interpretação de Sadjo põe para fora a angústia dessa outra mulher, vítima de um drama que mescla ultraje, dor e a necessidade mesma de estar em êxodo constante, a fim de preservar a própria vida. Enquanto sua situação não se define, ela aguarda, quase prisioneira, num abrigo para imigrantes ilegais, a maior parte africanos. Todos apavorados diante da menor possibilidade de terem de regressar a seus países de origem.

Uma pequena reviravolta torna a fazer com que Lára e Adja se reencontrem. A aspirante à agente da imigração é ela mesma uma apátrida na própria terra, dormindo com o filho no carro velho e apertado porque foram despejados do apartamento e sobrevivendo das amostras grátis que Lára pede. Ísold Uggadóttir elabora essas duas pobrezas, tão díspares e tão parecidas, pintando um retrato da sensível, ainda que em tintas fortes, da maternidade desassistida, de vidas pelas quais ninguém se importa. Todas valendo uma ninharia num mundo desigual por inteiro.


Filme: Inspire, Expire
Direção: Ísold Uggadóttir
Ano: 2018
Gêneros: Drama
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.