Os muitos problemas do homem, suas várias doenças, suas infinitas dores — e sua monumental incapacidade de lidar com todas essas questões, imperfeito que é frente ao mundo que o hostiliza cada vez mais —, fomentam dramas existenciais os mais intocáveis. A filosofia salvaria a pátria, mas quem disse que ela foi feita para isso? A alma do homem é cheia de meandros, reentrâncias, lugares tão escondidos e tão pouco iluminados que ninguém é capaz de acessar. Há quem encare problemas de qualquer natureza como uma forma de se autoconhecer, se testar, se superar, saindo, em correndo o ouro sobre azul, muito mais resistente para a próxima dificuldade ao final do processo. Por outro lado, existem os que simplesmente bloqueiam a mínima possibilidade de que passe um feixe de luz sequer por entre esses monólitos: quanto mais encalacrado está, mais fica e, pior, mais gosta. O romancista francês Gustave Flaubert (1821-1880) discorreu sobre a incontornável fragilidade do espírito humano frente às armadilhas que a sorte lhe prepara em muitos de seus textos, como em “Madame Bovary”, por exemplo. No livro, publicado em 1856, Flaubert fala de uma mulher que abandona o mundo, abandona a si mesma e embarca rumo a outra realidade, em que as circunstâncias mais absurdas são o que pode haver de mais corriqueiro, só por estar apaixonada. Paixão, em tintas um pouco mais fortes, misturada a muito suspense, é o que se vê em “Jogo Perigoso” (2017), dirigido por Mike Flanagan, em que um casal se entrega a experiências sexuais as mais apimentadas, mas acaba se deparando com um imprevisto decisivo para os dois. Já em “Fratura” (2019), de Brad Anderson, a força da relação entre pessoas que se amam continua em jogo, mas no horizonte muito mais complexo de uma denúncia. Os cinco títulos da lista, todos na Netflix, se sucedem do mais novo para o lançado há mais tempo, sem critérios quanto à preferência.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix
Todos ou, pelo menos, 90% da humanidade, tivemos problemas com nossos pais, em especial naquele inferno interior chamado adolescência. Tudo nessa fase da vida nos fede a conspiração universal contra nossos sonhos e a orientação de pais atentos é fundamental a fim de se manter a sanidade. Mas, e quando se tem uma mãe completamente descompensada, que devota sentimentos muito além de mero amor e zelo? “Fuja” expõe sem nenhum pejo a relação de uma mãe superprotetora e sua filha deficiente física Chloé, a surpreendente Kiera Allen, portadora de necessidades especiais na vida real. Chloé quer provar para a mãe que pode ser independente e levar uma vida normal, mas não tem a mais pálida ideia de como sua vida seguiu tal curso, que tudo poderia ter sido muito diferente e, o principal (sem spoilers, fique tranquilo): em que medida sua mãe é responsável pelo que lhe aconteceu.
Meio a contragosto, Ray Monroe leva a mulher, Joanne, e a filha, Peri, para os três passarem o feriado de Ação de Graças na casa dos sogros. Ray faz uma parada num posto de gasolina a fim de comprar um refrigerante, conhaque e pilhas para o brinquedo com que Peri se distrai ao longo da viagem, mas o que seria algo completamente banal, logo se converte num pesadelo. A loja de conveniência não aceita cartões de crédito e Ray compra apenas o essencial, o que não inclui as pilhas. Volta para o carro, abre a porta traseira, derrama o refrigerante no banco, e entre uma e outra imprecação, Peri salta. Num crescendo da atmosfera de total imprevisibilidade da trama, um cachorro aparece, o que apavora a menina, que vai arredando, até que Ray, tentando afastar o cão, atira uma pedra contra o animal, mas assusta ainda mais Peri, que cai de uma altura considerável e baixa ao hospital. Depois de muita burocracia, Peri é atendida, mas ela e Joanne desaparecem sem deixar rastro. Ray começa a investigar por sua conta o que poderia ter acontecido com a família, mas é acossado por circunstâncias misteriosas, até se desvendar o que existe de macabro por trás da fachada do hospital.
Charlotte já foi uma virtuose do violoncelo, mas hoje a audiência só se interessa por Elizabeth. Tomada de inveja — e de fúria —, Charlotte vai conquistando a simpatia de Elizabeth, e elas logo se tornam amigas. O propósito da vingança de Charlotte é explorado de maneira sutil pelo diretor Richard Shepard, que manipula as emoções do espectador como bem quer, de modo que o público ora se indigna com as maquinações da preterida, ora se compadece de seu ostracismo, ainda que Charlotte se livre mais e mais de qualquer pejo e verdadeiramente se entregue à falta de moral imbricada nas atitudes que toma contra a nova adversária. O diretor Richard Shepard propõe uma brincadeira sinistra quanto a saber no final se Charlotte estaria de alguma maneira autorizada a se valer dos expedientes que usou a fim de suavizar seu opróbrio. Preciso, quase calculado, “The Perfection” é música para os ouvidos de quem aprecia narrativas com tempo próprio, mas nem por isso menos vigorosas.
Fins de semana entre amigos são um tiro no escuro: na segunda-feira, pode-se voltar com as baterias recarregadas, pronto para mais sete dias de trabalho duro, ou, devido à frustração de se conhecer verdadeiramente a pessoa a quem tomamos como um irmão, sofrer um desapontamento forte o bastante para marcar de modo nefasto a lembrança. Nas horas vagas, Marcus se dedica à caça como hobby, prazer que quer de que Vaugh também desfrute. O pequeno vilarejo no interior da Escócia em que passam momentos de descanso é o cenário ideal para que Marcus dê a Vaugh suas lições elementares de tiro. Tudo corre bem e a caçada tem início. O primeiro alvo é dos bons, um animal de porte avantajado. Um tiro é disparado, mas o bicho escapa. Mesmo assim, estão certos de que a bala teve algum outro destino e agora o que resta aos dois é se livrar de problemas com a lei.
A adaptação do livro homônimo de Stephen King, publicado em 1992, entrega o que promete: um suspense na temperatura adequada, temperado por atuações dignas de nota. Em “Jogo Perigoso”, percebe-se a influência de obras anteriores de King, a exemplo de “Louca Obsessão”, também já levado às telonas, mesmo caso de “Fuja”, os três lapidares ao amalgamar os conceitos de amor e ódio num mesmo sentimento, o que dá à narrativa ritmo e profundidade muito característicos. Este thriller conta a história de um casal nada normal dado a brincadeirinhas sexuais um tanto heterodoxas. O que era para acabar só em diversão e prazer torna-se um episódio que foge inteiramente do controle.