Por uma ou outra razão, cidadãos de bem começam a passar bem longe da polícia. Ao menor sinal da presença armada do Estado, que, em tese, deveria garantir sua segurança e o direito mais básico, a vida, as pessoas, especialmente, nas áreas mais pobres das metrópoles ao redor do mundo, se apavoram, desejando que o que julgam como uma invasão acabe o mais depressa possível e a vida retome seu curso natural, para a melhor ou para a pior. Essa sensação de verdadeiro mal-estar gerada pela simples referência à circulação de membros de corporações armadas por determinadas áreas de um lugar específico toma conta de gente honesta, que sabe muito bem que pode terminar pagando o pato igualzinho quem tem contas a ajustar com a lei. Dessa teratologia social é que nascem as grandes tragédias de um povo, porque paulatinamente encurralado, sem saída, sem ter a quem recorrer, sem ter quem se importe com seus dramas — e desajustes com a polícia, por menores que pareçam, têm sempre o impacto de uma bomba atômica na vida daqueles que fazem da retidão de caráter seu único propósito.
Essa descrição poderia muito bem aludir ao Brasil, mas está mencionando é a França, mais precisamente Marselha, cidade portuária ao sul do país, e mais precisamente ainda a sua porção norte. A influência de gangues das mais variadas colorações ideológicas, voltadas a modalidades de crimes impossíveis de citar em qualquer texto que não o estritamente técnico, o dos boletins de ocorrência e dos processos judiciais, transformara-se em genuína praga sociológica, e mesmo os esquadrões de elite, os BAC — sigla para Brigades Anticriminalité, “brigadas anticriminalidade”, em tradução literal — consideram temerário se meter com delinquentes de certos pontos de Marselha. Qualquer aproximação não autorizada e a população desses distritos, entre revoltada e afrontosa (e muito acuada também, por óbvio), acaba exercendo uma autoridade que deveria estar reservada com exclusividade à polícia, um caldeirão de ódio que nunca arrefece, mas ferve em temperaturas cada vez mais altas, valendo-se principalmente das lacunas que o próprio Estado fora deixando ao longo dos anos.
Inspirado no caso verídico de doze policiais flagrados em comunicações com chefões do narcotráfico e que estendiam seus tentáculos também para o ramo da extorsão, presos em 2012, “BAC Nord: Sob Pressão” (2020) é uma espécie de “Tropa de Elite” europeu — muito mais suave, sem o caos generalizado dos filmes do brasileiro José Padilha, mais estilizado e mais disperso também. Se há uma coisa que dois trabalhos tão díspares entre si possam ter em comum é a anarquia, aqui personalizada pela hegemonia dos bandos chefiados por imigrantes. O filme de Cédric Jimenez, roteirizado por sua mulher, Audrey Diwan, e Benjamin Charbit, abre com a soltura de Gregory Cerva, de Gilles Lellouche, e a partir de então Jimenez conduz seu filme de modo a evidenciar a desodem institucional que reina na polícia marselhesa. O sargento Cerva é um veterano com vinte anos de polícia, líder dos BAC 26, composto também pelo novato Antoine, interpretado por François Civil, e Yass, vivido por Karim Leklou. O modo de trabalho do grupo é misturar-se a criminosos miúdos a fim de descobrir de onde vem a carga de entorpecentes que abastece boa parte da França. Logo se tem claro que sutileza não é o forte do BAC 26, tomando-se o modo como Cerva dirige a viatura, abalroando quem aparece pela frente. Uma perseguição, filmada com câmeras portáteis, talvez amadoras, dá a dimensão da leviandade dos três, que terminam assombrados pelo maior pesadelo possível para um tira num filme: assinar papéis. Pouco depois, a vida torna aos casos rotineiros de traficantes pés-de-chinelo, punguistas já velhos conhecidos do cárcere e a grande novidade, vendedores de tartarugas em extinção. Completamente entediados, três policiais, os BAC Nord, desejam juntar o útil ao agradável ao sair da rotina e, de lambuja, erradicar o tráfico de entorpecentes, atávico na vizinhança. Sem muita ideia de onde estão se metendo — e nada preocupados com perfumarias como direitos humanos e ética —, esses mosqueteiros pós-modernos se jactam de sua natureza justiceira, mas não contavam que o feitiço poderia virar contra eles quando a informante Amel, de Kenza Fortas, entra na brincadeira.
Alongando-se em anticlímax que apontam para vilões que não são vilões e frisando o caráter meio mambembe do trio, em especial depois que a excelente Fortas passa a integrar a história central, o filme apresenta reviravoltas previsíveis, cujos efeitos francamente desapontadores são amenizados pelo carisma do quarteto de protagonistas. De qualquer maneira, Cédric Jimenez é capaz de levar sua história para onde ela deveria mesmo ir, e “Bac Nord: Sob Pressão” pode até se mostrar um passatempo divertido. Mas só isso.
Filme: Bac Nord: Sob Pressão
Direção: Cédric Jimenez
Ano: 2020
Gêneros: Suspense/Policial
Nota: 8/10