A história brutal da Netflix que vai deixá-lo sem piscar por 148 minutos Divulgação / Netflix

A história brutal da Netflix que vai deixá-lo sem piscar por 148 minutos

Ser mãe talvez tenha muito mais a ver com sentimento do que com o sangue propriamente. Digo “talvez” porque é impossível desconsiderar a experiência única de se saber diretamente responsável pela vida de outra pessoa, que cresce no seu ventre, depende dos nutrientes que você lhe fornece, se ressente dos seus maus hábitos e reage a quase todos os estímulos enviados sem que seja necessário racionalizar nada, deixando que a natureza e seus instintos se encarreguem de tudo. De ficar de fora dessa experiência ressentimo-nos nós homens, mas também um grupo de mulheres que, por uma razão ou outra, não podem conceber. Claro que a maternidade, uma verdadeira instituição, transcende evidências meramente biológicas, e, felizmente, existem mulheres nobres o bastante para dar uma oportunidade à fortuna e que por esse motivo se realizam com a adoção de uma criança, desde sempre sua própria cria, carne de sua carne, espírito de seu espírito, ou chegam à vida de uma família após uma etapa de muito sofrimento, dor, derrotas, luto, ansiando fazer sua parte para afastar de vez as nuvens negras do horizonte.

Pairando também como nuvens negras ainda mais pesadas cada mulher indiana está a ameaça da violência sexual. Nova Délhi, a capital mundial do estupro, registra uma média anual de 35 mil casos de mulheres que terminam violentadas ou mesmo mortas, ainda que refutem a abordagem invasiva de um desconhecido na rua, ou por justamente por isso. Uma das cenas menos ofensivas de “Mom” (2017) já recorre a esse argumento para introduzir aos poucos as sequências nada sutis que tomarão corpo ao longo do filme de Ravi Udyawar. Uma personagem assiste ao noticiário da televisão, um pouco enfático demais ao reportar outro crime sexual contra mulheres, uma realidade cristalizada no inconsciente coletivo, contra a qual as pessoas transmitem a impressão de não estarem tão convencidas a lutar, como se homens tivessem o direito sagrado de dar vazão a seus ímpetos, inclusive aos mais abjetos, sempre que instados pela natureza, subentendendo-se que esse é mesmo o sentido da vida, o jeito, ainda que torto, das coisas se darem, e o pior: se episódios como esses deixam a aura da eventualidade e se tornam praxe, alguma responsabilidade as vítimas têm. A filha dessa mulher discorda, entre envergonhada, por sentir que, no fundo, o raciocínio da mãe lhe parece bem fundamentado, e esperançosa, ousando crer que os criminosos serão indiciados, levados a julgamento, condenados e que cumprirão sua sentença até o fim, sem vivenciar a truculência que perpetraram.

Udyawar se vale dessa premissa inicial para aprofundar-se sobre temas diversos. Sridevi (1963-2018) dá vida a Devki Sabarwal, uma professora que tenta cortar o mal da subjugação masculina pela raiz. Casada com Anand, vivido por Adnan Siddiqui, pai de Arya, personagem de Sajal Ali, e Piyu, de Riva Arora, a filha em comum do casal. O diretor explora esse estranhamento natural, quase instintivo, de Arya para com a madrasta lançando mão de enquadramentos intimistas, em que Ali deixa claro por meio de expressões faciais, esgares, reviradas de olhos, que rejeita a nova companheira de Anand, que ela julga estar usurpando a figura da mãe, morta há algum tempo. Tudo tipicamente adolescente, e até aí, nenhum drama de fato relevante. Essa introdução serena serve para que Udyawar vire a chave, dos conflitos familiares algo tolos e sem dúvida assaz tediosos, para o suspense e o melodrama, depois que a filha mais velha, a enteada de Devki, é atacada sexualmente depois de uma festa, no Dia dos Namorados, por um rapaz por quem estaca interessada. O diretor intensifica a tensão entre os membros da família, destacando o casal, porque Anand estava ausente quando do cometimento do crime, viajando a negócios. Ou seja, queira-se ou não, mais uma vez é uma mulher a culpada pela desdita, agravada por tem colhido outra mulher.

O roteiro de Girish Kohli se alia à direção segura de Ravi Udyawar quanto a levar à cena uma história decente, ainda que resvale no dramalhão em algumas passagens. Há os momentos em que o filme faz o espectador sentir-se impelido a se munir de toda a carga empática a fim de entender a dor daquelas pessoas, mas eles são a minoria, perdidos em meio a trechos de suspense aguado. Todavia, “Mom” pode ser uma boa chance de traçar uma linha de corte acerca da maneira como Bollywood vinha lidando com temas como violência contra a mulher, estupro e feminicídio — ou não vinha lidando — e observar mudanças, malgrado pontuais, na abordagem de tais assuntos.


Filme: Mom
Direção: Ravi Udyawar
Ano: 2017
Gêneros: Drama/Suspense
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.