Suspense psicológico da Netflix vai te causar reações extremas e te fazer perder o chão Quim Vives / Netflix

Suspense psicológico da Netflix vai te causar reações extremas e te fazer perder o chão

Nem o mais apaixonado dos mortais ousaria dizer que o amor é uma experiência fácil. Nunca conseguimos saber ao certo se estamos manifestando nosso benquerer na exata medida, se estamos sendo um tanto negligentes ou se, ao contrário, o sentimento de máximo apreço por alguém está extrapolando o limite do razoável, degringolando para outras dimensões que não as da afeição extrema e devotada. Pior: quando se chega ao estágio em que o amor vira vontade de controlar, de dominar, de possuir — leia-se doença —, é raro que aquele que se encontra tomado pela perversão do amor a reconheça, recobre a razão e procure se corrigir, mediante ajuda profissional, se necessário. Na maioria dos casos, o mau amante dobra a aposta, se faz de injustiçado, mente, corrompe, enquanto traça planos verdadeiramente diabólicos a fim de manter o outro aprisionado junto com ele em seu delírio.

Por esboçar o perfil de um homem perigosamente confuso no que considera amor, mas não passa de psicopatia, na hipótese mais esperançosa — e perturbação moral no estado da arte, na mais nefasta —, “Remédio Amargo” (2020) é um dos melhores exemplos de como o cinema colabora para o entendimento da loucura por trás do amor romântico desde, pelo menos, “Atração Fatal”, dirigido por Adrian Lyne. Para bem e para o mal, o público no Ángel de Mario Casas as mesmas fraquezas, as mesmas compulsões, as mesmas habilidades para o mal de Alex Forest, a amásia possessiva e nada racional do clássico do suspense dramático de 1987, sendo que a personagem da sempre irretocável Glenn Close está um grau abaixo na escala da loucura se comparada ao paramédico vivido por Casas, porque se sabia a outra e, por mais que se considerasse merecedora do amor daquele homem — nada santo, mas de quem é impossível não se ter uma pontinha que seja de dó —, tinha algum senso de realidade. Ángel, pelo contrário, está irremediavelmente convicto de que em Vanesa já não resta mais qualquer laivo de humanidade. De um ser humano, a operadora de call center interpretada por Déborah François é transformada em mulher, de mulher em fêmea, de fêmea em objeto, de objeto em nada, só reavendo sua identidade no desfecho apocalíptico, que cai como uma luva e coroa da melhor forma tudo o que o diretor Carles Torras apresentou ao longo de 94 minutos.

Torras parece determinado a testar a boa vontade do espectador. Se as coisas parecem bem no roteiro, coescrito pelo diretor, David Desola e Hèctor Hernández Vicens, no minuto seguinte, o castelo de areia que é a vida do casal de protagonistas vem a baixo, e se tem a nítida impressão de que era só isso o que faltava para que se expusesse que aquele relacionamento se estendera para muito além do recomendado. A tragédia que colhe Ángel atinge Vanesa com muito menos força. O eixo da narrativa fica um tanto oblíquo. A possível culpa da personagem de François por algo que ela não fez se apossa da história e deixa o travo de melancolia que Torras explora à perfeição. A exposição de argumentos transversais, como a dificuldade de Vanesa em engravidar, anterior à nova condição de Ángel — e, ao que tudo indica, o problema está nele, desde sempre —, e, por óbvio, a indiferença  crescente da companheira, motivada pelo interesse em Ricardo se prestam ao gatilho que faltava para que Ángel passe a apresentar o desenvolvimento pleno de um comportamento paranoico, ancorado por um ciúme doentio, que o envenena, mas compreensível, ainda que jamais desculpável: o personagem de Guillermo Pfening, seu colega de trabalho, estava com ele no momento em que sua vida mergulhou no abismo no qual ele faz questão de se afundar cada vez mais.

Os elementos para um suspense psicológico complexo, portanto, estão por toda a parte. A direção acurada de Torras se esmera em ajustar o andamento da história a esse aspecto de desequilíbrio mental, que se torna mais intenso no protagonista, levando-o a se defrontar com a sequência de perdas e tragédias em que agora sua vida está alicerçada — e, faça-se-lhe justiça, o acidente não fora por culpa sua — e a recusa em admiti-las. Se o modo de agir sem limites de antes, que se espraiavam para a invasão de privacidade e a manipulação, passaram a escandalizar e apavorar Vanesa e o público, a virada do primeiro para o segundo ato do filme traz um cenário que reforça a sensação de pânico de Vanesa, e novamente de quem assiste, já completamente tomado pela narrativa a essa altura dos acontecimentos, e assumindo sem pruridos pseudo-humanistas a torcida pela anti-heroína. São o medo e a raiva de Ángel que o impelem a tanto, bem como a grande expectativa quanto ao modo como se vai resolver todo esse conflito.

A impersonalidade do ambiente em que Ángel e Vanesa passam enclausurados por quase todo o filme, por exemplo, com referências caóticas aos anos 1980, 1990 e começo dos 2000 — o telefone de disco, o aparelho de som com entradas para LP e K7, o papel de parede lúgubre —, mostradas junto no mesmo quadro que o celular e o computador, tornam mais potente a atmosfera de encarceramento, como se os dois estivessem a ponto de ceder à asfixia de um casamento sem amor. Mais solar, embora igualmente triste, essas sequências lembram as cenas em que Noah Baumbach dispõe Nicole e Charlie, vividos por Scarlet Johansson e Adam Driver em seu “História de um Casamento” (2019), como num ringue de boxe, com as consequências previsíveis e imprevisíveis de uma relação que se esgota.

Talvez o único problema de “Remédio Amargo” esteja mesmo no encerramento, algo ligeiro, com uma resolução meio fácil e até notória (e desejável) demais, mas que não foge à premissa inescapável: o amor pode ser um risco. No mais, o alerta de Torras sobre relacionamentos abusivos, doentios, que se espelha para a análise a respeito do modo como esses falsos amores afetam a vida de gente bem-intencionada, serve como uma extensão dos telejornais e anteparo da realidade, cada vez mais inviável para quem continua se atrevendo a acreditar no amor. Num mundo em que há pessoas que se sabem incapazes de amar, mas usam máscaras que as fazem parecer pateticamente normais, o menor deslize pode desencadear consequências inestimáveis.


Filme: Remédio Amargo
Direção: Carles Torras
Ano: 2020
Gêneros: Drama/Suspense/Terror
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.