“O mundo tem problemas demais. Por que não investir essa dinheirama aqui primeiro?”. Este parece um argumento no mínimo coerente quando se fala do multiempresário sul-africano-canadense naturalizado americano Elon Musk e sua cisma em explorar outras dimensões, flagrantemente ratificado pela vida real. Em 30 de maio de 2020, data escolhida para o memorável lançamento da SpaceX, Dragon 2, a espaçonave construída a fim de ser mandada à Estação Espacial Internacional (a ISS, na sigla em inglês), a Terra ainda chacoalhava por causa do homicídio recente do ex-vigilante negro George Floyd (1973-2020) por Derek Chauvin, um policial branco, no meio de uma rua de Minneapolis, diante de uma câmera de celular. A atrocidade de um homem em situação de poder esmagando o pescoço de um indivíduo vulnerável contra o asfalto, executando ele mesmo a pena que julgava adequada por Floyd ter pago o maço de cigarros que comprara com uma cédula falsa de vinte dólares, se dera há somente cinco dias, mas já tinha virado notícia velha. Fato semelhante aconteceu mais de meio século antes, em 20 de julho de 1969, quando da alunissagem da Apollo 11 e sua diminuta tripulação. Edwin Aldrin, Michael Collins (1930-2021) e Neil Armstrong (1930-2012) alcançaram o solo do satélite natural da Terra diante de reações antagônicas, muito distantes de uma unanimidade irrefutável. Em “Summer of Soul (…or, When the Revolution Could Not Be Televised)”, o documentário vencedor do Oscar em 2022, o diretor Ahmir Khalib Thompson, o Questlove, expõe a inquietação dos participantes do Harlem Cultural Festival de 1969, um Woodstock negro e urbano, diante de supostas revoluções que não os contemplavam. Tudo muda, mas tudo permanece igual.
O oportunismo de Musk fica patente em “De Volta ao Espaço”, de Jimmy Chin e Elizabeth Chai Vasarhelyi, sobre a obstinação de alguém sem dúvida determinado a trabalhar duro em nome do que acredita, mas com convicções bastante questionáveis. O tom francamente laudatório da figura do multibilionário assumido pelo filme, lançado em 7 de abril de 2022, coloca muito de suas qualidades a perder, e acaba por se resumir, quando muito, a um vídeo corporativo da SpaceX projetado a seus funcionários, exaltando a “alma empreendedora” do chefe ao passo que varre para debaixo do tapete o que não convém publicizar, tudo isso perfeitamente natural no capitalismo. Os problemas começam quando, previsivelmente, a realidade se faz confrontar com a hagiografia profana de Musk. Até onde se sabe, Chin e Vasarhelyi não são parte da folha de pagamento do dono da SpaceX, mas cineastas respeitados, vencedores do Oscar. Nunca se questiona o verdadeiro motivo de Musk, dono de uma fortuna avaliada em mais de 260 bilhões de dólares (ou 1,3 trilhão de reais), querer tanto se lançar à corrida espacial, à revelia do próprio governo dos Estados Unidos, que aperta o torniquete sem pena e estrangula cada vez mais o orçamento da NASA, a agência espacial americana. Musk estaria botando na rua, com alguns anos de antecedência e muitos milhões de verdinhas para queimar, uma possível candidatura à Casa Branca? Em se tratando de um sujeito que contou com o apoio confesso e entusiasmado da grande imprensa para atingir tamanha popularidade — e, com alguma licença retórica, poder juntar patrimônio em dezenas de vezes superior ao PIB de muitos países africanos, como a Somália, por exemplo, uma vez que se valeu dessa popularidade para seguir expandindo seus negócios —, não se pode descartar nenhuma hipótese. O que se poderia esperar de um tipo como Elon Musk na presidência dos Estados Unidos? Seria uma espécie de Donald Trump ligeiramente modernizado, mas com os mesmos vícios de origem (reacionarismo cultural; tentativas de conduzir a imprensa para as pautas que lhe interessam; conservadorismo hipócrita nos costumes, pulando de um casamento para o outro com a facilidade de quem arreganha um sorriso cínico e mostra dentes bem tratados que escondem intenções que não pode confessar, ao menos por ora)? Em tempos como os que vivemos, a proeminência de figuras dúbias como o CEO da Tesla, que desenvolve carros elétricos e se empenha, claro, em torná-los comercialmente viáveis, pai de oito filhos, e chegado a fomentar polêmicas, como desafiar para um corpo a corpo literal ninguém menos que Vladimir Putin, é algo a se temer.
A essas, se sucede uma cornucópia de outros questionamentos, voltados à política ou não, mas “De Volta ao Espaço” os evita e se concentra em personagens como Doug Hurley e Bob Behnken, os astronautas escolhidos pela SpaceX a integrar a Dragon 2, a bem-sucedida missão da companhia de Musk no espaço. Vertendo os fatos para o linguajar que ele entende, Hurley e Behnken são excelentes garotos-propaganda do negócio de Musk, encampando a ideia do pioneirismo do chefe, sem se furtar a admitir que seu ofício é resultado de uma vasta sequência de procedimentos, que podem resultar baldados ao menor deslize, com consequências funestas que ninguém ou nada, nem mesmo todo o dinheiro do patrão pode reparar. Esses eventos trágicos são oportunamente resgatados pela ótima edição de Daniel Koehler, Dan Duran e Phillip Schopper, que aludem mediante imagens asfixiantes ao desastre subsequente ao reingresso do ônibus espacial Columbia à atmosfera terrestre, em 2003. O vazamento de um líquido inflamável em contato com o oxigênio fez o monstro de milhares de toneladas de alumínio se desintegrar como papel, numa infernal bola de fogo.
Remontando a uma época outrora gloriosa da história dos Estados Unidos e da humanidade, mas finda, “De Volta ao Espaço” se presta a um bom passatempo, e isso em si já tem seu quê de contraditório. Em que medida interessa prestar atenção a uma narrativa que prega a colonização de outros planetas, se nunca soubemos cuidar deste aqui, perdido numa guerra insana que ameaça aniquilá-lo de vez? Em sendo o homem, o que é, se chegássemos a ser o que Elon Musk pretende, sairíamos dando cabo do resto da Via Láctea, até que fosse necessário um outro Big Bang e tudo, enfim, recomeçasse do zero. E mais Elon Musks, por óbvio, surgiriam novamente.
Documentário: De Volta ao Espaço
Direção: Jimmy Chin e Elizabeth Chai Vasarhelyi
Ano: 2022
Gênero: Documentário
Nota: 8/10