Filme francês da Netflix vai deixar sua vida mais leve Divulgação / Netflix

Filme francês da Netflix vai deixar sua vida mais leve

As comédias francesas vêm fazendo razoável sucesso entre espectadores do mundo todo, mesmo em meio aos que inicialmente torcem o nariz para o gênero. E em se tratando de uma história que junta um educador de conduta um tanto suspeita e uma senhora ainda aferrada a velhos maus hábitos, tudo em nome da recuperação de uma turma de adolescentes em situação de risco social, todo cuidado é pouco. “Sementes Podres” (2018) goza de prestígio equivalente a “Um Banho de Vida” (2018), dirigido por Gilles Lellouche, e “Mimadinhos” (2021), de Nicolas Cuche, com a vantagem de descer muito mais suave, ainda que suas pretensões deveras moralistas tendam a botar tudo a perder. Felizmente, há uma correção de rota a tempo hábil e mesmo o relativo comedimento de cenários e da produção em si não são capazes de empanar a vivacidade do filme, talvez sua característica mais pulsante, e a que pode de fato anular ou ao menos tornar mais amenos os choques quanto à singeleza excessiva do roteiro.

O texto de Kheiron, também diretor do longa, tem peculiaridades, para o bem e para o mal. Nascido no Irã, o cineasta, reconhecido entre os bons comediantes da França, onde se radicou com os pais por motivos políticos nos anos 1980, imprime sua marca e sua história em tudo o que faz. Foi assim em seu primeiro filme, “Nós ou Nada em Paris” (2015), no qual, resguardado por larga medida de licença poética, narra a desventura de um cidadão  iraniano que se estabelece na periferia parisiense com a mulher e o filho pequeno, este último seu próprio alter ego. Três anos mais tarde, ele volta à carga autobiográfica a fim de dar vida a Waël, imigrante e morador do subúrbio da capital francesa, como ele, que vai num programa de reabilitação de jovens em desacordo com a lei por ter sido ele mesmo flagrado num delito. Nessa ocasião, o acompanhava a mãe adotiva, Monique, da sempre vibrante Catherine Deneuve, mestra em aplicar os mais engenhosos golpes a fim de chegar ao fim do mês de barriga cheia. É certo que o enredo dá a impressão de que vivem rodeados de ingênuos, de quem são eles os únicos dotados de alguma malícia na vizinhança, mas o filme se presta a sua primeira lição apresentando Victor, vivido por um André Dussollier cheio de interesse. É ele quem desmascara Waël e Monique, a prostituta aposentada que reconhece como ex-parceira de farras. Voluntário numa escola referência no ensino a alunos que já cometeram atos infracionais — ou chegaram bem perto —, Victor parece disposto a perdoar a dupla de vigaristas, desde que se prontifiquem a também fazer parte da equipe. Sem muita margem para escolha, os personagens de Kheiron e Deneuve aceitam a oferta, passagem que marca um segundo ato pleno de altos e baixos.

Lidando com seis rebeldes em ebulição, furiosos com tudo, Waël se desdobra para tirar deles o melhor de cada um, conseguindo erradicar alguns de seus silêncios, diminuir seus complexos e dinamitar ideias erradas cristalizadas desde sempre, tudo isso valendo-se de métodos dignos de um animador de auditório, os mesmos métodos que ele desenvolveu ao longo da vida, principalmente da vida antes da chegada a Paris. Órfão num país em guerra, seu Irã natal, o menino Waël, aqui interpretado por Aymen Wardane, precisou saber contar apenas consigo mesmo, como Kheiron faz questão de salientar em flashbacks cujo pathos emociona. Paulatinamente, emergem tipos como o policial-traficante de Alban Lenoir que assedia Ludo, o aluno mais agressivo da turma, desempenho cativante de Youssouf Wague, arco que poderia ser mais bem explorado. Como Sophia Loren em “Rosa e Momo” (2020), levado à tela por Edoardo Ponti, Waël torna-se o redentor desses meninos, incorporando o Príncipe de Maquiavel e usando sua porção marginal para fins benemerentes.

Respiros cômico-românticos como o centrado no envolvimento de Victor e Monique e de Waël com a advogada Sarah, papel de Leila Boumedjane, irmã de Nadia, sua protegida cujo futuro parece mais auspicioso, vivida por Ouassima Zrouki, além do campeonato de dança de salão disputado pelos personagens de Deneuve e Kheiron, acabam se constituindo em prejuízo para a narrativa, uma vez que o mote central, a relação conflituosa de um grupo de adolescentes com os paradigmas elementares da vida em sociedade, é  levado com brandura, quiçá demasiada. Não obstante, “Sementes Podres” dribla situações involuntariamente ridículas — nada a ver com o figurino de Monique para o primeiro dia de trabalho — e se firma pelo conjunto da obra, imperfeito, até monótono, mas gracioso.


Filme: Sementes Podres
Direção: Kheiron
Ano: 2018
Gênero: Comédia
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.