Dois indivíduos obrigados a passar algum tempo na companhia um do outro não parece uma ideia exatamente original para um filme. Não sugere romance, não tem o impulso necessário para o suspense e ainda afugenta quem só concebe comédias românticas com cenas em que quase todo o elenco contracena junto. Entretanto, o argumento de “All the Old Knives” (2022) é, sem dúvida, muito peculiar. Um homem, uma mulher, alguns anos perdidos na lembrança, um ofício em comum, um fracasso perturbador para chamar de nosso. O cenário perfeito para a conflagração de muitos conflitos.
Essas são palavras-chave para entender o que se passa entre Henry Pelham e Celia Harrison. Oito anos antes, os dois, agentes da CIA, haviam sido destacados para resolver a crise que terminaria com a morte dos 120 ocupantes do voo 127, sequestrado em Viena por terroristas do Al-Da’irat, uma facção islâmica extremista. Junto com os Pelham e Harrison, performances bem cuidadas de Chris Pine e Thandiwe Newton, estavam seus superiores, Vick Wallinger, vivido por Laurence Fishburne, e Bill Compton, de Jonathan Pryce. Revirando o caso, a cúpula do órgão conclui que a possível negligência de seus servidores foi, na verdade, fruto de sabotagem por parte de um dos funcionários da agência, que teria vazado informações confidenciais. Pelham é incumbido de inquirir os colegas do departamento burocrático que trabalharam na missão malsucedida — um se matou, em circunstâncias ainda por serem aclaradas, meses depois da tragédia —, a fim de saber quem pode ter sido o traidor, ou toupeira, no jargão policial.
É aqui que o filme, inspirado no romance homônimo, publicado em 2015, de Olen Steinhauer, coautor do roteiro com o diretor, o dinamarquês Janus Metz Pedersen, começa. “All the Old Knives” se aproxima mais dos trabalhos mais intelectualmente elaborados de John le Carré (1931-2020) do que da correria insana, regada a chuva de balas e marmanjos trocando socos, de “007”. A sequência que desemboca no mote central da história, o reencontro de Pelham e Harrison num restaurante sofisticado de Carmel-by-the-Sea, na Califórnia, depois que cada qual seguiu sua vida, está longe de delinear quão dramática é a situação, pelo menos para um deles. Entre um flerte inconsequente e outro, a discussão retrocede quase uma década. A fim de situar o espectador sobre o comportamento deles ao longo do pior dia de suas vidas, Pedersen lança mão do encadeamento do tempo linear com flashbacks mais longos. Dessa explanação, pode-se deduzir que alguém está mentindo, está a par de alguma coisa que ainda resta oculta e logo, logo um novo acontecimento nada alvissareiro vai se abater sobre esse estranho ex-casal.
Malgrado irreverentemente artística, a escolha do diretor se revela ineficaz quanto a manter a fluidez da narrativa, uma vez que o fio dramático se rompe facilmente com a oscilação temporal — além de quem assiste também se perder e perder o interesse no enredo. O mistério que se desvela daí também não tem nada de mais e é muito mais um segredo de polichinelo, daqueles que de tão óbvios se tornam constrangedores, que a subtrama capaz de implodir o que vinha sendo contado até então. Por seu turno, o que se descobre fica abaixo do que se esperava, não obstante a explicação para o clímax tenha sido visivelmente pensada para chocar.
Muito barulho por nada, principalmente porque o elenco, a melhor coisa no longa, é um achado. É difícil ser peremptório e dizer quem está melhor, se Chris Pine, ás em mesclar sentimentos dialéticos como amor e ódio, mágoa e desejo, como fizera magistralmente em “Legítimo Rei” (2018), dirigido por David Mackenzie, se Thandiwe Newton, uma das atrizes que mais dominam seu ofício no panorama artístico hoje. Indo com a mesma dedicação do besteirol “Norbit — Uma Comédia de Peso” (2007), levado à tela por Brian Robbins, ao soturno “Caminhos da Memória” (2021), de Lisa Joy, Newton faz com que Harrison, inicialmente configurada como escada para Pelham, roube a cena em reiteradas ocasiões — e é forçoso dizer que os dois, Pine e Newton, deixam os veteranos Laurence Fishburne e Jonathan Pryce, em atuações lamentavelmente pálidas, comendo poeira.
Ainda que deixe a desejar da perspectiva de genuína obra de arte cinematográfica, “All the Old Knives” é bem-vindo por seu aspecto transgressor, de cultuar novas formas de se fazer velhas coisas. Seu ímpeto de reinventar a roda o perde, mas experimentar é parte inalienável do processo criativo, sem o qual o cinema não chegaria a um décimo do que se tornou. Que esse trabalho de Janus Metz Pedersen não seja considerado cult antes da hora.
Filme: All the Old Knives
Direção: Janus Metz Pedersen
Ano: 2022
Gêneros: Suspense/Drama
Nota: 8/10