Enfurecedor, ganhador do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro acaba de chegar à Netflix

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Se perder uma pessoa que se ama é sempre um golpe duro de demais, a situação torna-se verdadeiramente insuportável se o relacionamento com aquele que morreu dizia respeito apenas à intimidade de duas pessoas e só fazia sentido se analisado sob a perspectiva do segredo, como se se um dos dois fosse um criminoso. Na prática, é esse o tratamento dispensado à protagonista de “Uma Mulher Fantástica” (2017), drama espanhol em que o diretor Sebastián Lelio discorre sobre até que o ponto vai o amor de uma mulher por um homem, especialmente se acompanhado por adjetivações como “aberração”, “perversão”, “loucura”. E como essa mulher passa a lidar com a própria vida, com sua visão de mundo, com as possíveis certezas que tivesse sobre os outros e si mesma, todas implodidas, reduzidas a pó com a ajuda da intolerância de gente que se julga superior a ela, mas que apenas não tem a nobreza de reconhecer-lhe a dignidade, que achavam impossível encontrar em alguém tão pouco convencional e que parece ofender só por continuar existindo, e de uma maneira acintosamente reta.

Em “Uma Mulher Fantástica”, essa mulher, dividida entre a lembrança de um amor que até dizia seu nome, mas que se fazia vivo apenas quando tudo ao redor se calava e o mundo fechava-lhe os olhos, e a necessidade de enfrentar a vida, que continua, malgrado mais cheia de complicações, tem um segredo. Marina Vidal, a protagonista interpretada por Daniela Vega, era feliz com Orlando Onetto, o sujeito algo misterioso e frágil de Francisco Reyes, mas não eram casados. Marina é, ao menos para efeitos práticos, Daniel, uma mulher transexual que ainda não fez a adaptação completa rumo à nova identidade que almeja, e, conforme o roteiro de Lelio e Gonzalo Maza sugere, nem a queira fazer. Marina parece gostar de ser exatamente como é — ainda que pequenas sutilezas ao longo da história, como uma cena plasticamente irretocável, já no desfecho, confronte a personagem de Vega, trans na vida real, com seu sexo biológico —, e, para ela, não há nada de errado nisso, por mais que todos se espantem com sua autoconfiança e, por isso, todos os lugares por onde passa lhe parecem odientos.

Fica claro na trama que a relação que Marina e Orlando mantêm é meio errante, sim, em que pese ela dizer que planejavam morar juntos. Na verdade, quando o personagem de Reyes sai de cena, vitimado por um aneurisma cerebral que lhe desnorteia e acaba por vencê-lo, Marina já estava no apartamento do amante, que vai, claro, entrar como mais uma intrincada variável na equação que tenta juntar a garçonete, batalhando uma incipiente carreira de cantora, e o dono de uma tecelagem, 35 anos mais velho. Esse lugar mágico, que para a protagonista é muito mais que apenas um refúgio para seus encontros fortuitos com Orlando, é onde se realiza em suas carências mais básicas, não lhe diz mais nada depois da partida súbita de seu companheiro, e ela nem sequer aparenta algum interesse em ficar com o imóvel, mediante um processo que pode se converter num longo calvário ou um acordo qualquer com Sonia, de Aline Küppenheim, a esposa do homem que partilhava seus dias também com ela. Marina queria só um pouco de consideração, mas mesmo isso lhe negam. Talvez seu amor por Orlando tenha mesmo uma aparência criminosa.

Lelio aborda as dificuldades na vida de Marina com riqueza de detalhes, refinando o argumento que assinala que a personagem central nunca aspirou a dar golpe nenhum: ela é tratava como uma delinquente só por ser como é. No hospital onde Orlando fora atendido, ela desperta suspeitas, porque o paciente chegara como hematomas pelo corpo, mas as lesões apareceram por causa da queda da escada antes de um dos ataques. Quando a polícia chega, chamada por um dos médicos, Marina é tratada por seu nome de registro, porque seus documentos ainda não foram retificados, e insinuam que seja uma prostituta. Seu luto torna-se desnecessariamente mais doloroso, e acaba deixando o pronto-socorro à socapa, cansada de ser perseguida, depois de telefonar para Gabo, o irmão de Orlando vivido por Luis Gnecco, e comunicar-lhe o que estava se passando. Quando pensa que, finalmente, vai conseguir retomar o dia a dia, a começar pelo trabalho na lanchonete de Wanda, papel de Trinidad González, uma justiça injusta volta a entrar no circuito, agora na pele de Adriana, a comissária que investiga crimes de natureza sexual, de Amparo Noguera, que a leva a passar pelo maior constrangimento de sua vida, mais incômodo que a onipresença dos familiares de Orlando, sempre dispostos a acossá-la e ultrajá-la um pouco mais. Bruno, o filho mais velho interpretado por Nicolás Saavedra, aparece sem prévio aviso e de repente está na sala do apartamento, exigindo que Marina saia num prazo apertado. Até a tutela de Diabla, a pastora-alemã de Orlando, lhe é negada.

Sebastián Lelio não se furta a mostrar quase nada em “Uma Mulher Fantástica”, e consegue fazê-lo sempre da maneira mais sofisticada, elegante e sensível. Lelio opta por abusar das cores e das luzes, promovendo um festival de vermelhos e verdes que se mudam para amarelos e azuis, inundando as silhuetas das pessoas que dançam numa boate, enquanto sombras e fulgores se chocam num ambiente híbrido, em que se misturam dia e noite, realidade e fantasia, metáfora perfeita do que acontece com a protagonista tornada possível graças ao refinamento da técnica de Benjamín Echazarreta. Passagens que remetem o público a outras percepções, a exemplo da cena em que Marina caminha contra um vendaval que por pouco não a carrega, ou de “You Make Me Feel Like a Natural Woman”, a música cuja mensagem fala de uma mulher realizada em sua feminilidade, na voz de Aretha Franklin (1942-2018), ajudam a mensurar a dor de seu desajuste no mundo. Um mundo que agride, quando deveria defender, ou, ao menos, respeitar, e que se importa demais com questões íntimas de pessoas adultas, e oportunamente se esquece do que de fato importa.


Filme: Uma Mulher Fantástica
Direção: Sebastián Lelio
Ano: 2017
Gênero: Drama
Nota: 9/10