O filme da Netflix que vai te virar pelo avesso, fará seu sangue ferver e seus olhos entrarem em colapso

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Um país em ebulição social em que déspotas se valem do cenário de caos a fim de impor suas vontades. Qualquer um que saiba inglês é capaz de imaginar o que um filme chamado “Beasts of No Nation” pode pretender. Mais difícil, no entanto, é entender a maneira como escolhe chegar lá.

Lançado em 2015, “Beasts of No Nation” (“bestas de lugar nenhum”, em tradução livre) é um pequeno manifesto em defesa das liberdades individuais, da esperança, da inocência — ainda que pareça ser o exato oposto de tudo isso. Cary Joji Fukunaga, diretor, roteirista e diretor de fotografia do longa, vai fundo em sua decisão de levar à tela as imagens mais provocantes que consegue, contrabalançadas pelo texto quase leviano. Mesmo nos momentos em que a narrativa degringola para sequências de violência gratuita, que abundam numa guerra, Fukunaga encontra uma maneira de suavizar o que se vê, de modo a realçar o absurdo de homens que se enfrentam — e tanto pior em se tratando de homens miseráveis, alguns tornados loucos pela violação de seus direitos mais básicos, ideia de que Uzodinma Iweala, médico e sociólogo, lança mão no romance homônimo no qual o filme é inspirado.

A trama é, grosso modo, uma série de circunvoluções em torno de Agu, um garoto de oito anos cuja família é toda exterminada por uma facção separatista de seu país — presume-se que seja a Nigéria, uma vez que Iweala é nigeriano, mas Fukunaga não entra nesse mérito. Vivido pelo excelente Abraham Atah, Agu só sobrevive porque dispara numa carreira suicida para dentro da selva, comendo ervas venenosas e alguns dos insetos que infestam o lugar, até ser descoberto por membros de outro grupo paramilitar, liderado por um personagem chamado apenas de Comandante. O diretor une esses dois atos de “Beasts of No Nation” deixando que o próprio Agu narre seu infortúnio, numa voz de lamento, sem dúvida, mas também firme, e nunca chorosa. É assim que o espectador fica sabendo que os parentes do menino compunham a organização que apeara do poder os homens cruéis que os assassinaram e agora voltam a mandar.

O Comandante ganha vida pela interpretação certeira de Idris Elba, que deixa aflorar a natureza diabólica do chefe do bando sem, contudo, jamais deixar que esse sujeito, entre misterioso e cínico, extravase qualquer sentimento mais oculto. O que se depreende de sua figura é que se trata de um guerrilheiro profissional, de um mercenário, que soubera aproveitar uma boa ocasião para subjugar indivíduos atormentados pela guerra. A experiência e o talento de Elba permitem à audiência encarar o Comandante à luz da crítica sociológica, como a encarnação perfeita da debacle da civilização, um homem que molda sua identidade a depender do meio em que se encontra. Esse tipo facinoroso se crê não o monstro que corrompe crianças já há algum tempo desiludidas, que abdicaram da felicidade e conscientes de que no mundo vale mesmo é a lei do mais forte, mas, ao contrário, seu salvador, seu redentor, o único que pode tirá-los da ignomínia da fome e da indignidade de passar resto da vida se esgueirando por entre a mata, tentando escapar da morte, caçados feito bichos. Para tanto, bota-lhes nas mãos um fuzil, que eles aprendem a manejar na marra, conta um pouco de sua vida, ouve seus comandados e desse modo estabelece com eles uma relação paternal, que a maioria nunca teve com ninguém. Assim se formam as tiranias.

Esse é o grande trunfo de “Beasts of No Nation”: expor quão rápida pode ser a conversão de alguém ainda inocente, porque despreparado para compreender certas minúcias da vida, em uma fera que até consegue se divertir matando. Uma vez que descobrem no mais sujo de si essa propensão e esse gosto pelo abominável, os soldados deixam o status de meros asseclas do Comandante para serem eles também pequenos autocratas. No caso de Agu, ele tem a consciência de que ao rachar a cabeça de um homem, instado pelo superior, cometera o pior dos pecados, mas como se aquele fosse um rito de passagem, um genuíno batismo de sangue, sabe que nunca mais estará livre do Comandante e sua gangue, malgrado consiga ser resgatado.

Quanto mais avança, mais o filme testa os limites de quem o assiste e é impossível não se deixar abater quando se chega à conclusão de que crianças como Agu são manipuladas ao bel-prazer de sicários como o Comandante só por um prato de comida, abrigo e a proteção que lhes infunde o sentimento falso de que são queridos de verdade. O desfecho, que vislumbra a árdua realidade da vida desses garotos mesmo depois que se veem livres do jugo do poderoso inclemente de plantão, remete ao cenário distópico de outras obras, a exemplo de “Senhor das Moscas”, de William Golding (1911-1993), publicado em 1954, e começa a martelar na cabeça do público a ideia de que Agu é o próximo Comandante, já que lhe são suprimidas todas as possibilidades de escapar de tal sorte — e visto que o vilão de Idris Elba fora quem mais se aproximara dele, por interesse, mas por algum afeto também.

Por fim, não deixa de provocar certo incômodo que tramas centradas na África, em seus costumes e sua história sejam contadas, quase sempre, por cineastas não-africanos, quando é perfeitamente possível que o continente fale por si só, como em Amina (2021), dirigido por Izu Ojukwu, e Diário de um Pescador (2020), de Enah Johnscott. De qualquer forma, a reflexão proposta por Cary Joji Fukunaga em “Beasts of No Nation” nos faz ter alguma noção do drama que acomete os Agus mundo afora. E dói saber que eles não estão só na África.


Filme: Beasts of No Nation
Direção: Cary Joji Fukunaga
Ano: 2015
Gênero: Drama/Guerra
Nota: 9/10