Filme gótico espanhol, que lembra ‘O Labirinto do Fauno’, é uma pequena obra-prima escondida na Netflix

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A história do homem deve muito à Europa. Foi no Velho Mundo que a humanidade se lançou ao desafio de desbravar terras inalcançáveis, o que por sua vez suscitou pesquisas em equipamentos náuticos, aprimoramento das embarcações, refinamento da própria ciência. Como os fatos históricos obedecem a uma sequência, não há a possibilidade de vácuo. Um evento sucede outro, e só o faz porque um terceiro, anterior, lhe conferiu meios para que a narrativa evoluísse.

Na Europa também se encontram as bases da cultura ocidental como a conhecemos em nossos dias. O domínio formal das ciências, centrado nas universidades que se iam estabelecendo — como a de Coimbra, em Portugal, uma das mais antigas do mundo ainda em funcionamento —, e a sabedoria popular, transmitida oralmente, de pai para filho, são tesouros que devemos todos às civilizações europeias arcaicas.

“O Ferreiro e o Diabo” é um dos contos mais famosos entre os europeus. Numa das adaptações que melhor absorveram o teor da história, os Irmãos Jacob (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859) narram a astúcia autodestrutiva de um ferreiro que faz um pacto com uma entidade sobrenatural maligna a fim de conseguir tudo aquilo que deseja, a vida eterna, inclusive. Publicado na coletânea “Contos de Crianças e Domésticos”, entre 1812 e 1815, em dois volumes, “O Ferreiro e o Diabo” logo se tornou um paradigma da arte da narração curta e despertou o interesse de públicos os mais variados, da vassalagem à aristocracia.

“Errementari: O Ferreiro e o Diabo” é a versão do diretor basco Paul Urkijo Alijo para a história popularizada na pena dos Irmãos Grimm, ainda que se valha também da influência de José Miguel Barandiaran (1889-1991), padre e antropólogo espanhol que se dedicou a registrar lendas do País Basco. Lançado em 2017, a estreia de Alijo foi auspiciosa. O roteiro, escrito com Asier Guerricaechebarria, deixa evidente a familiaridade com contos de fadas e tramas pautadas pelo realismo mágico. Malgrado tantas inspirações, o trabalho de Alijo é bastante original ao ressaltar o macabro num enredo aparentemente pueril.

Na abertura do longa, o diretor leva a história à Primeira Guerra Carlista (1833-1840), entre os simpatizantes do infante Carlos María Isidro de Borbón (1788-1855), absolutistas, e os aliados da rainha Isabel II (1830-1904), liberais. A cena corta para um soldado combatendo numa das frentes e passa a se saber que se trata de Francisco Patxi, vivido por Kandido Uranga, ferreiro capturado pelas tropas do governo e prestes a ser executado com vários outros cativos. Graças ao acordo que faz com um demônio, Patxi escapa da morte, volta para a mulher e os dois passam a lutar na guerra. Oito anos depois, Alfredo Ortiz, o investigador do governo interpretado por Ramon Agirre, procura por esse homem atormentado pela morte da companheira, acusado injustamente pela população da aldeia onde vive de tê-la matado.

A verdadeira personalidade de Patxi, sobre quem pairam ainda suspeitas de ter uma fortuna em ouro, resultado do espólio de guerra que conseguiu amealhar — que Ortiz cobiça sem cerimônia —, só vem à superfície com a entrada de Usue em cena. A garota, órfã de uma mulher que se enforcou em circunstâncias obscuras, a grande reviravolta do filme, traz uma cicatriz na face esquerda e outras tantas no espírito. A personagem, elaborada com desenvoltura por Uma Bracaglia, vai parar na choça sinistra do ferreiro à procura da boneca, jogada no terreno por um menino com quem brigara. Usue invade a morada de Patxi e se depara com uma cena dantesca: há um menino trancado numa gaiola, assim mantido para que o ferreiro o torturasse. Como se assiste a seguir, aquele menino deveria ter permanecido lá e Usue vai ter de arcar com os desmandos de sua ingenuidade.

Tudo em “Errementari: O Ferreiro e o Diabo” é muito bem cuidado, muito bem pensado. É impossível ao espectador não se sentir parte do que é apresentado, ficando até ligeiramente perdido em meio aos tantos eventos que se desenrolam na trama. Pleno da violência e do lirismo típicos das histórias fantásticas europeias, o filme de Alijo não deixa nada a dever às grandes (e caras) produções do gênero, seja as levadas à tela por diretores mais novos — caso de “O Labirinto do Fauno” (2006), de Guillermo del Toro — , seja alguma outra da grife do tarimbadíssimo Tim Burton, especialmente em enredos que aludem ao freaky, ao estranho, ao inconvencional, nem mesmo no que diz respeito à estilização gótica, com a vantagem de ainda ter se preocupado com a devida ambientação histórica. Uma mistura de Edvard Munch (1863-1944), Edgar Allan Poe (1809-1849) e Steven Spielberg.

Honrando o legado de Luis Buñuel (1900-1983) e a obra em progresso de Pedro Almodóvar, Paul Urkijo Alijo é mais um a conseguir mostrar seu valor no cinema espanhol. “Errementari: O Ferreiro e o Diabo” levou sete anos para sair do papel, tempo mais que suficiente para Alijo entender o real significado de seu ofício. Seu filme se presta a uma viagem por tempos sombrios, mas com muito mais sonho. É por isso que o público embarca com ele, sem resistir.


Filme: Errementari: O Ferreiro e o Diabo
Direção: Paul Urkijo Alijo
Ano: 2017
Gênero: Terror/Fantasia
Nota: 9/10