Filme que relata uma das histórias mais brutais e perturbadoras dos Estados Unidos acaba de chegar à Netflix

Filme que relata uma das histórias mais brutais e perturbadoras dos Estados Unidos acaba de chegar à Netflix

A violência contra a mulher — ou violência de gênero, como prefere o politicamente correto — é um tema cada vez mais recorrente no cinema. A bola da vez neste assunto é “Believe Me: The Abduction of Lisa McVey (2018)”, um relato que escandaliza pelo realismo e pelos descaminhos da história até que se sacramentasse um final.

Lisa McVey é uma sobrevivente. Em 3 de novembro de 1984, aos 17 anos, a garota foi sequestrada por Bobby Joe Long (1953-2019), um psicopata que se tornava famoso justamente por seviciar e assassinar mulheres com crueldade, sem despertar suspeitas. McVey permanecera nas mãos do bandido por 26 horas, sofrendo estupros e ouvindo impropérios, até conseguir escapar. Ao chegar em casa, inicia-se um ciclo de novos abusos, uma vez que ninguém crê em uma palavra do que ela diz, e a protagonista tem de lutar por justiça sozinha, recebendo o apoio do detetive de David James Elliott, que tinha uma desconfiança de que o crime do qual McVey fora vítima era parecido demais com uma série de atrocidades contra mulheres jovens que se vinha observando já há algum tempo.

Jim Donovan foi às últimas consequências a fim de tornar sua história palpável. Para tanto, se esmerou até em conseguir o beneplácito — e depois a torcida fervorosa — de Lisa McVey, hoje uma aguerrida policial de 54 anos que emprega sua infausta experiência para solucionar crimes sexuais em Tampa, Flórida, onde ainda vive, especialmente os que envolvem crianças. A interpretação de Katie Douglas, tocante, deixa clara a instabilidade emocional de McVey, já irremediavelmente abalada por abusos anteriores ao episódio com Long, desempenho de fôlego de Rossif Sutherland. Fica-se sabendo que a menina está decidida a dar cabo da própria vida, uma vez que não suporta ser molestada pelo namorado da avó, um enredo que se repete ad aeternum mundo afora desde sempre. Esse vínculo indesejado se estabelece a partir do alcoolismo de sua mãe, quando a avó passa a se encarregar dela e os ataques começam.

A escolha de mencionar no título a palavra “abdução” já revela a maneira austera com que Donovan pretende conduzir seu filme. Por abduzida, pode-se entender que McVey fora alijada de um ambiente ao qual pertencia — o que é verdadeiro —, como também é possível se atribuir uma atmosfera meio mística à sua desdita — o que é perigoso. É certo que muitos fatores nada racionais colaboraram para que a vítima se desvencilhasse de seu algoz, reviravoltas que seguram o interesse da audiência no decorrer de menos de hora e meia. Contudo, Long era, já naquele tempo, um facínora, um delinquente habilidoso que encontra no assalto sexual a mulheres jovens o meio de coroar seus ímpetos doentios. O diretor faz o filme oscilar entre o drama e o suspense, sendo capaz até mesmo de imprimir certo humor no momento em que a personagem de Douglas se bate diretamente com o criminoso. À medida que as horas avançam, McVey vai entendendo a mente de seu aprisionador, e se vale de suas tantas carências no intuito de minar sua energia. Muito esperta, faz com que Long acredite que ela havia se apaixonado por ele, e a partir de então, o jogo começa a virar a favor da protagonista. Deixando o papel de menina fragilizada, que Long decerto esperava dela, McVey convence o bandido a deixá-la ir, porque o pai, doente, precisava de seus cuidados. Longe de ser a fortaleza que se erigia ali, para seu próprio espanto, Lisa McVey sacava da lembrança as experiências de tortura as mais abjetas, sempre frescas no pensamento, quanto a calcular cada passo de seu plano. Mesmo todo o tempo vendada, a protagonista era capaz de atentar para detalhes do caminho entre o cativeiro e o lugar onde é desovada, bem como recorda-se da sensação entre asquerosa e salvífica de ter apalpado o rosto de Long, o que terminaria por ajudá-la a descrever as feições do agressor à polícia.

Bobby Joe Long pôde dar vazão à sua verve psicótica até 16 de novembro de 1984, quando é preso na porta de um cinema. Foram atribuídos a ele ao menos cinquenta estupros e onze assassinatos — ele se declara nominalmente culpado por dez. Tudo em Long rescendia a um fumo de mistério, de excentricidade, mas também de método, cálculo e boa dose de arrojo. Ele selecionava suas vítimas mediante anúncios em que eram oferecidos eletrodomésticos a preços sugestivos. Bobby Joe Long recebeu a injeção que o matou em 23 de maio de 2019, 34 anos depois de ter sido condenado. Lisa McVey estava na primeira fila.

Sabe-se que a relação entre vítima e carrasco acaba sendo contaminada por uma porção de sentimentos contraditórios e se nota a mágoa — justa — de Lisa McVey ainda hoje, por mais que insinue o contrário. Jim Donovan ressalta essa dicotomia da personagem, indecisa entre deixar falar a policial, a mulher que deu a volta por cima e construiu uma carreira fundada na vontade de ser útil a outras pessoas que passem pelo mesmo trauma que ela, ou a menina vulnerável, que custou a digerir essas trapaças do destino. Uma coisa é certa: Lisa McVey é digna de crédito.


Filme: Believe Me: The Abduction of Lisa McVey
Direção: Jim Donovan
Ano: 2018
Gênero: Suspense/Drama
Nota: 8/10