Com a dose certa de lirismo e dor, novo filme da Netflix é capaz de tocar qualquer coração sensível

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A Turquia tem uma tradição sólida no cinema. O documentário “A Demolição do Monumento Russo em St. Stephen” (1914), dirigido por Fuat Uzkinay (1888-1956), é o primeiro filme genuinamente turco de que se tem notícia e, desde esse momento, a produção cinematográfica do país nunca mais parou, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando os ânimos das nações serenaram e havia mais uma razão para se contar boas histórias, e de forma mais autônoma. O fim dos enfrentamentos entre os países serviu para que os diretores turcos viessem à luz e apresentassem sua própria visão de mundo, sem se preocupar se teriam subsídio do Estado para filmar enredos sobre militares sobre-humanos que salvavam a Pátria de ameaças invisíveis ou reproduzir peças já encenadas pelas companhias de teatro. De 1923 a 1939, a Turquia contou com apenas um diretor. Muhsin Ertugrul (1892-1979) levou à tela 29 produções ao longo desses dezesseis anos, mas a partir de 1952, o cenário se desanuviou de vez e 49 roteiros foram rodados no país, número superior a tudo o que a Turquia já havia produzido em toda sua história.

O cinema turco foi se tornando cada vez mais popular e, entre as décadas de 1960 e 1970, a produção nacional já era capaz de lançar cerca de 300 filmes por ano, façanha que alçou a Turquia ao terceiro lugar no ranking dos países de maior destaque na indústria cinematográfica mundial. Cinema virou uma atividade de que a Turquia não podia mais prescindir, como a Hollywood para os Estados Unidos e Bollywood para os indianos. A Yesilcam, o conglomerado que reunia os estúdios turcos mais importantes, tinha público cativo, ancorando sua produção em melodrama carregados, sem muita preocupação com o apuro estético, realidade que dava azo à situações curiosas. Em mais de uma ocasião, os dois maiores festivais de cinema do país se negaram a conceder o prêmio de Melhor Filme, justamente por haver nada que sequer se aproximasse disso. Afortunadamente, no transcorrer de mais de meio século, esse é um passado que passou. “The Butterfly’s Dream” (2013), roteirizado e dirigido por Yilmaz Erdogan, figura como uma das produções mais sofisticadas da Turquia. Inspirando-se na trajetória dos poetas Muzaffer Tayyip Uslu (1922-1946) e Rustu Onur (1920-1942), que morreram de tuberculose sem nunca terem cruzado as fronteiras de seu país — não puderam nem ao menos deixar a província em que nasceram —, o trabalho de Erdogan presta um grande serviço quanto a desvendar os quase insondáveis mistérios que circundam a milenar cultura turca. Outro bom exemplo que depõe a favor do cinema turco contemporâneo é “Milagre na Cela 7” (2020), de Mehmet Ada Öztekin, sobre um homem com atraso intelectual acusado injustamente do homicídio de uma garota com idade próxima à de sua filha. Se a produção flerta com a megalomania ao se pretender um guia sobre como vencer o mal do mundo, tem seus méritos, entre os quais se destaca a maneira poética do turco enxergar-se a si mesmo, o outro e o mundo. Essa é uma qualidade de que “O Violino do Meu Pai” também se reveste.

Andaç Haznedaroğlu é uma das raras mulheres a adquirir prestígio no cinema da Turquia. A diretora de “O Violino do Meu Pai”, lançado em 21 de janeiro de 2022, prova que tudo o que se falou sobre os filmes turcos neste artigo é verdade. Haznedaroğlu abre sua história com uma bela cena de Istambul em plongée, vista de cima. A câmera desce e se vê uma roda de músicos numa rua da capital turca, em que uma garotinha dança atraindo os passantes a apreciar o espetáculo e, por óbvio, oferecer uma gorjeta. O roteiro, coescrito pela diretora, Murat Taskent e Palaspandiras, baseado na adaptação da peça de Yılmaz Erdoğan, segue, como um cartão de visitas da Turquia, apresentando, entre uma e outra revelação acerca da trama, cenários de tirar o fôlego. Sem pressa, se descobre que Mehmet, o virtuose do violino interpretado com uma mistura interessante de doçura e aridez por Engin Altan Duzyatan, terá de tomar a decisão mais difícil de sua vida, e o que quer que resolva irá afetar diretamente a vida de Özlem, a menina que dançava em meio aos músicos. A personagem de Gülizar Niza Uray, sua sobrinha de oito anos, está prestes a ficar órfã de pai e sozinha no mundo, e Mehmet tem a opção de assumir a guarda dela ou entregá-la à adoção. Um grande dilema para um homem que nunca experimentou pertencer a um núcleo tão restrito, e cuja carreira sempre foi sua razão de viver.

Conflitos de família, mormente os que envolvem crianças e tipos meio malditos como o personagem de Duzyatan quase sempre rendem filmes memoráveis, na Turquia ou em qualquer outra parte do globo. Em “Manchester à Beira-Mar” (2016), o diretor americano Kenneth Lonergan se vale de argumento semelhante num dos filmes mais belos — e tristes — do cinema. As novas configurações familiares, realidade presente no mundo inteiro, só comprovam que a natureza humana é hábil em se adaptar à dureza da vida, desde que possa ter por esteio o respaldo de alguém com quem se possa partilhar os sentimentos que melhor definem nossa condição. Pode-se viver muito bem sozinho (ou quase); entretanto, uma vez que se impõe em nossa jornada uma contingência como a que colhe Mehmet, é chegada a hora de se rever os planos. A forma como o protagonista o entende é que se constitui a grande reviravolta de “O Violino do Meu Pai”.

Com a dose certa de lirismo e dor, Andaç Haznedaroğlu faz de seu filme uma história tipicamente turca, mas capaz de chegar a qualquer coração sensível, a qualquer tempo. De um jeito tão simples quanto vigoroso, “O Violino do Meu Pai” se arvora num farol sobre a complexidade do homem ao iluminar seu lado negro e realçar suas luzes. Música para todos os ouvidos, portanto.


Filme: O Violino do Meu Pai
Direção:
Andaç Haznedaroğlu
Ano
: 2021
Gênero: Drama
Nota: 8/10