Politicamente incorreta e hilária, comédia filosófica que acaba de estrear na Netflix foi feita sob medida para pessoas inteligentes

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Flertando abertamente com o nonsense, “A Origem do Mundo” decerto é um dos filmes mais controversos do cinema recente. Associar essa sua característica ao fato de ser uma produção francesa poderia até se mostrar acertado, uma vez que desde Jean-Luc Godard, o maior cineasta vivo da França, a arte cinematográfica experimenta reiterados episódios de insurreição contra o estabelecido, mas propositalmente acintoso, o filme de Laurent Lafitte se abriga sobre o amplo guarda-chuva do deboche e da autoironia para dar vigorosos safanões na audiência. Senão, vejamos.

Assim como em “Je vous Salue, Marie” (1985), prepararam todo um arsenal de falsa polêmica a fim de atacar o trabalho de Lafitte, ator experimentado numa primeira ofensiva como diretor. A história de uma garota humilde, que trabalha no posto de gasolina do pai, joga basquete nas horas vagas e fica grávida de um filho cuja paternidade atribui a José, o rapaz com quem saía, mas que não reconhece ter participação no estado interessante da moça, uma vez que nunca transaram. Numa óbvia alegoria sobre a concepção sobrenatural de Cristo, Godard pinta um retrato das transformações sociais encampadas pela mulher, que começava então a ser dona de seu destino. Detratrado de maneira sistemática e pusilânime por gente que não entendia direito o que era viver num regime democrático, ainda incipiente — mas que seguiu assim pela vida afora, sem o menor problema e sem a menor vergonha —, “Je vous Salue, Marie” foi proibido num Brasil em que, teoricamente, a ditadura militar iniciada vinte anos antes já não vigia mais.

Lafitte, da mesma forma que Godard, reivindica para seu trabalho as considerações filosóficas que julga reveladoras sobre o tema sobre o qual joga luz, malgrado essa ideia remonte ao século 19. Em 1866, o pintor realista Gustave Courbet (1819-1877) recebera uma encomenda inusitada. O diplomata turco otomano Khalil-Bey (1831-1879), colecionador de imagens eróticas, lhe havia solicitado um trabalho que representasse o nu feminino na forma menos rebuscada que conseguisse. O resultado foi um choque, em grande parte graças à inegável originalidade do retratista, que nunca renegou sua obra, esta, sim, vítima de episódios pouco lisonjeiros. Em seu último endereço, depois de uma peregrinação pelos porões do Exército Vermelho, quando foi roubada da coleção do barão Ferenc Hátvany (1881-1959), um aristocrata húngaro e também artista plástico, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a sala da casa de campo do psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981), “A Origem do Mundo” ficava devidamente escondida sob uma escultura de madeira. A pintura só recebeu o merecido descanso em 1995, momento em que o público pôde, afinal, conhecer a crueza da tela de Courbet, no Museu de Orsay, em Paris, de cujo acervo consta hoje.

O entendimento tão particular de Gustave Courbet sobre um assunto universal foi o ponto de partida tomado pelo dramaturgo Sébastien Thiery, que por seu turno inspirou Laurent Lafitte. Como o filme de Lafitte, a peça de Thiery também expõe o lado menos nobre da maternidade, com algumas de suas tantas misérias, mas sendo o cinema uma manifestação artística que vive da ênfase — e do exagero mesmo, em muitos casos —, a reprodução fílmica desse argumento, por óbvio, não poderia deixar de ser a mais visada, a exemplo do que se passara com “Je vous Salue, Marie”. O filme narra a história de Jean-Louis Bordier, que sente que seu coração não bate mais — e isso não é nenhuma figura de linguagem. Não há sinal de morte na esquina, mas é só uma questão de tempo: o protagonista, interpretado pelo próprio Lafitte, terá de resolver um problema do qual nem se lembrava mais. Jean-Louis recorre à ajuda atrapalhada de seu melhor amigo, o veterinário Michel Verdoux, vivido por Vincent Macaigne, e a empreitada conta com a supervisão acurada de sua mulher, Valérie, personagem de Karin Viard, que se compadece de sua agonia e tenta achar uma justificativa para o fenômeno. Valérie supõe que seja o caso de recorrer a outras dimensões a fim de encontrar uma saída, e é aí que entra Margaux. A guru espiritual interpretada por Nicole Garcia vislumbra uma solução, mas que de tão absurda para o protagonista, talvez não possa sair do plano das ideias. Por ser muito mais pragmática — e muito menos sensível a pruridos morais —, é que a personagem de Viard toma a frente do que deve ser feito, concentrando também boa parte da comicidade de “A Origem do Mundo”.

Todo o tempo escandalizado, não pelo problema em si, mas pelo subtexto que encerra, Lafitte se sai sem dificuldade num papel que deixa seu personagem à beira de um ataque de nervos. Seu problema, estritamente relacionado à peça de Thiery e mais ainda ao quadro de Courbet, é apenas o pano de fundo para que aspectos obscuros de Jean-Louis venham à superfície. Um ligeiro descompasso no casamento com Valérie, só cinco anos mais velha, mas já demonstrando não conseguir acompanhar o marido em seu apetite sexual — a sequência em que o protagonista acaba por aceitar fazer um programa com um travesti que faz ponto numa rua da vizinhança é mais uma das tantas passagens que evidenciam a sem-cerimônia com os europeus, e sobretudo, os franceses, lidam com a sexualidade e suas crises —, a consequente aversão que passa a sentir pelo episódio e a retomada artificial do relacionamento com a mãe, Brigitte, de Hélène Vincent, de quem passa a depender para fazer seu músculo cardíaco voltar à vida.

Se a ideia por trás da versão pictórica de “A Origem do Mundo” se equilibra, a algum custo, entre a beleza e a vulgaridade, no filme essa sua natureza é menos ponderada, precisamente porque o exótico da situação é apresentado para que se aproprie da cena. O absurdo da narrativa, que alude diretamente ao realismo de Gustave Courbet e à fantasia da peça de Sébastien Thiery ao mesmo tempo, torna-se um monumento declarado ao mau gosto — e nem entro no mérito sobre se as sequências de perseguição à velhinha interpretada por Hélène Vincent se enquadrariam em abuso ou mero sadismo, ainda que preservasse na essência um fim nobre. É claro que com seu filme Lafitte quis tecer suas elucubrações sobre as teorias de Sigmund Freud (1856-1939), que apregoava que, em se investigando bem, todos os males da humanidade têm ligação inquestionável com a mãe, isto é, com a maneira como fomos educados. Entretanto, a técnica escolhida pelo diretor, agressiva, com uso recorrente do humor físico — as cenas de nudez com o desfecho já se avizinhando, por não terem nenhum efeito prático no enredo, são pateticamente gratuitas —, se revela de todo equivocada. A decepção se torna insuportável se tomamos o filme do início outra vez e chegamos à conclusão de que o roteiro, de Lafitte e Thiery, se perde miseravelmente. 

Nem tudo resta baldado em “A Origem do Mundo”, todavia, até porque a discussão de temas polêmicos é sempre bem-vinda, e é exatamente disso que se nutre o expediente artístico, afinal. Contudo, as reviravoltas do filme, uma por cima da outra, já no último segmento do longa, atestam que faltou ritmo, maturidade e a vontade de épater la bourgeoisie, de chocar por chocar, venceu. Como disse um patrício de Lafitte, pode-se discordar de quem quer que seja, desde que defendendo-se até a morte o direito de que se diga o que se quiser.  E eu não tenho a menor vocação para Luís 14 — e muito menos para Sarney.


Filme: A Origem do Mundo
Direção: Laurent Lafitte
Ano: 2020
Gênero: Comédia
Nota: 7/10