O humor precisa ser irreverente ou então vira propaganda de margarina

O humor precisa ser irreverente ou então vira propaganda de margarina

Existem inúmeros motivos para ler a nova edição de “Pantagruel e Gargântua” (Editora 34), de François Rabelais, traduzida por Rodrigo Gontijo Flores. Aí vão 8.

1 — Muito antes de inventarem “Star Wars”, já existia a “prequel”. Parece que em português se diz “prequela”. Sério. “Prequela” lembra um cancro venéreo nos Países Baixos, então vamos de “prequel” mesmo. Gargântua é o pai de Pantagruel, como Anakin é pai de Luke, mas a história dele foi publicada em 1534, dois anos depois do primeiro livro. Os dois são gigantes e comem, bebem e transam como se o mundo estivesse à beira do Juízo Final. Vem daí as expressões “banquete pantagruélico” ou “proporções gargantuescas”. Literatura também é cultura!

2 — O autor francês François Rabelais faz parte do chamado “cânone literário ocidental”, um conjunto de obras que pouca gente leu, mas que todo mundo adora odiar. Ele é contemporâneo do inglês William Shakespeare e do espanhol Miguel de Cervantes.

3 — Embora tenha sido um erudito poliglota, com formação em medicina e teologia, Rabelais brilha mesmo é como escritor de humor. Ele é satírico, crítico e abusadamente debochado. A graça surge disso: da subversão do pernosticismo acadêmico com a escatologia mais vulgar saída das ruas.

4 — Isso também está presente nessa nova tradução. Rodrigo Gontijo Flores consegue trazer o texto do século 16 para o 21, utilizando o mesmo recurso estilístico do autor. No meio de um trecho pretensamente erudito, ele enfia expressões como “pitchula”, “chama o Raul” ou “cair o cu da bunda”. Gontijo Flores tem a ambição de traduzir toda a obra de Rabelais. “Pantagruel e Gargântua” é apenas o primeiro da série. Complete sua coleção!

5 — Todo livro é um produto do seu tempo. E peço perdão ao leitor da Bula por escrever essa cretinice. A obviedade é sempre óbvia, além de muito chata. Mas o que não falta, hoje em dia, é gente pra “desconstruir” as cartas de Pero Vaz de Caminha com a sensibilidade de quem cresceu nos Jardins comendo sucrilhos Kellogs. “Pantagruel e Gargântua” está inserido no período chamado de Renascença, que foi quando godos, visigodos e ostrogodos resolveram fingir que eram civilizados. O livro é contemporâneo das grandes navegações, dos tipos móveis e do cisma protestante. Rabelais investe contra o academicismo porque, na época, a Universidade da Sorbonne era o braço intelectual do catolicismo e decidia o que podia ser publicado e o que devia ser censurado. Ainda bem que vivemos no século 21, onde nenhum acadêmico fica postulando sobre o que pode e o que não pode, né? Né?

6 — E isso nos leva ao sexto motivo: a função do humor. O brasileiro adora pontificar. Todo mundo sempre foi 30% técnico de futebol, 30% sociólogo, 30% juiz do Supremo e 30% estatístico. De uns anos pra cá, virou também especialista em humor. O que pode, o que não pode e, principalmente, qual é a punição para quem diz o que não pode. Esse movimento autoritário não vem apenas da direita, mas também da esquerda, formando um caldo de intolerância social que gera aberrações políticas do tipo Trump e Bolsonaro. É a praga do século 21 e ela é muito mais letal do que a Covid. François Rabelais traz uma lição importante nos seus livros: o humor precisa ser sempre irreverente com os grupos que detém o poder, seja político ou cultural. Quando passa a ser reverente, deixa de ser humor e vira propaganda de margarina.

7 — Além de tudo isso, “Pantagruel e Gargântua” é muito engraçado, especialmente na tradução do Guilherme Contijo Flores. E o livro ainda tem desenhos do Gustave Doré, um dos maiores ilustradores franceses do século 19.

8 — Rabelais também influenciou Raul Seixas, mas eu não estou a fim de falar sobre isso. Dá uma googlada. Dica: “Faça o que tu queres, pois é tudo da lei, da lei…”