O filme aterrador, disponível na Netflix, que brinca implacavelmente com os sentimentos do público

O filme aterrador, disponível na Netflix, que brinca implacavelmente com os sentimentos do público

M. Night Shyamalan é um dos exemplos mais irrefutáveis do que é um cineasta plural. Goste-se ou não de seu trabalho, ninguém pode negar que, mesmo no suspense, gênero que o consagrou, Shyamalan, nascido na Índia e naturalizado americano, consegue abrir o leque sobre possibilidades diversas, tanto no que diz respeito à narrativa como acerca da própria natureza humana.

O diretor começou a ser percebido pela crítica a partir de “O Sexto Sentido” (1999), em que explorava as possibilidades cinematográficas numa história sobre paranormalidade e seus desdobramentos na vida de um garoto. Antes desafetado, Shyamalan foi se tornando um homem excessivamente cerimonioso, talvez resultado do passar dos anos em si, apresentando tramas enroscadas, confusas, plenas de metáforas um tanto herméticas. Por essas e outras, foi caindo num ostracismo intermitente, sumindo e reaparecendo em períodos mais ou menos determinados, nunca sendo abandonado pelo espectador, que, claro, seguirá associando sua figura à do criador daquele surrado bordão dito por Haley Joel Osment a dada altura do longa.

Comparado a “O Sexto Sentido”, “A Visita” é um filme leve. Abordando o terror também sob o panorama da criança, mas muito mais desabotoadamente, “A Visita” chegou aos cinemas mais de década e meia depois do filme que o consagrou, em 2015, quase como um manifesto do diretor por liberdade. Aqui, Shyamalan está muito mais solto: brinca com vários clichês do terror raiz (jumpscares envolvendo gente escondida dentro de armários, porões inabitáveis, a incomunicabilidade de celulares sem sinal, barulhos noturnos cuja origem não se consegue detectar…), injetando no enredo algumas modernices. O recurso de contar a história por meio de uma personagem que se presta ao papel de diretora-assistente, captando tudo por meio de sua própria câmera não é nada inovador — pode-se considerar “A Bruxa de Blair” (1999), de Daniel Myrick e Eduardo Sánchez, contemporâneo de “O Sexto Sentido”, como o primeiro filme a fazer uso mais efetivo do expediente —; contudo, Shyamalan é quem melhor consegue incorporar uma e outra linguagem num todo homogêneo, coeso, ao ponto de quem assiste se esquecer em muitos momentos  de que há uma câmera dentro da câmera. E isso não constitui problema nenhum.

“A Visita” vai num crescendo. O início, tranquilo, mostra Loretta Jamison, vivida por Kathryn Hahn, dando um depoimento sobre por que fugira de casa quinze anos antes, aos dezenove anos: por amor — ou a ilusão do amor —, claro. A personagem vai viver a vida como achava que deveria, e algum tempo depois, termina sozinha, abandonada por aquela paixão adolescente, mas agora com duas bocas para alimentar. Na sequência, Shyamalan deixa subentendido que o fracasso amoroso da personagem pode ser um reflexo de sua ruptura com os pais, comportamento que ela se policia para não reproduzir com seus filhos, Becca, interpretada por Olivia DeJonge, e Tyler, de Ed Oxenbould. Loretta e seus pais continuam irreconciliáveis, mas há uma chance de que voltem a se falar, graças ao interesse deles em conhecerem os netos. A personagem de Hahn concorda, mas mãe superprotetora assumida, conduz Becca e Tyler até a estação, dando uma corrida depois que o trem parte a fim de acompanhar a imagem dos filhos até quando fosse possível, na única passagem realmente engraçada do filme.

Enquanto os meninos não chegam a Masonville, na Pensilvânia, e a pauleira começa de vez, o diretor aproveita para exercer sua veia estética em “A Visita”. A fotografia de Maryse Alberti pontua o cenário com o branco da neve em contraste com os casacos verde e rosa de Tyler e Becca, e pores do sol avermelhados; para demarcar os sete dias que os dois irão passar na casa dos avós maternos, Nana e Pop Pop, personagens dos veteranos Deanna Dunagan e Peter McRobbie, são projetados na tela os dias da semana em vermelho, aludindo a filmes de vampiro e monstros que tais do cinema, um jogo metalinguístico que contribui para situar o espectador e ainda mantém o filme aquecido.

Neste segundo ato, “A Visita” se reveste da aura de conto de fadas, quando Nana é apresentada como uma avó amorosa, sempre disposta a satisfazer os desejos dos netos, e Pop Pop um avô bonachão, que se autoironiza e inspira a admiração dos dois. Mas a magia dura pouco. Aos poucos, Becca, a mais perspicaz entre os irmãos, estranha o comportamento de Pop Pop, que se enfurna no celeiro de tempos em tempos, e da avó, principalmente da avó. Ao se despir das tantas vaidades que podem acometer atrizes da sua estatura, Dunagan dá um show como a velhinha à primeira vista doce que se vai revelando uma verdadeira bruxa. Seu desempenho nas sequências em que contracena com DeJonge é o grande responsável pelo interesse que a história segue despertando até o desfecho; no momento em que começam a se estranhar, quando Nana pede a Becca que entre no forno, a fim de limpá-lo, certos enigmas tornam-se mais fáceis de serem destrinchados. Sem dúvida, há algo de muito errado com aquele casal, e por essa razão, o filme dá mais uma guinada e Shyamalan imprime à narrativa seu aspecto detetivesco, quando a personagem de DeJonge usa a câmera que levara no intuito de fazer um registro dos avós para investigar o que pode haver de oculto neles. Inicialmente imbuída do espírito altruísta de ajudar a mãe a exorcizar suas memórias familiares infelizes, Becca instala seu equipamento no celeiro e num armário da sala ao longo da noite, e, finalmente, se pode imaginar que o fim da história seja abominável. Só não se poderia supor o quanto.

Situações que levam ao pranto muitas vezes também provocam risadas, e “A Visita” o prova. Nas sequências finais do filme, como um “João e Maria” revisitado, Ed Oxenbould se mostra o mais talentoso dos jovens protagonistas, liberando a verve artística que por algum motivo contivera no decorrer da trama. O terror pode ser engraçado, patético até, mas nem por isso menos excruciante. Como a vida.