O filme de 7 minutos da Netflix que é um tapa na cara

O filme de 7 minutos da Netflix que é um tapa na cara

Há certos temas que, de tão graves, de tão urgentes, têm de ser abordados com toda a delicadeza. Decerto foi o que também pensaram os diretores Arnon Manor e Timothy Ware-Hill quando resolveram se concentrar sobre a violência policial contra cidadãos afro-americanos, mote de “Polícia e Ladrão”.

A população carcerária brasileira está prestes a atingir a triste marca de 700 mil detentos — quando a capacidade máxima é estimada em pouco mais de 440 mil, o que evidencia uma sobrecarga de quase 63%. Desses, cerca de 62% são pretos ou pardos, isto é, aproximadamente 450 mil presidiários têm essa característica étnica. É como se cadeia no Brasil tivesse mesmo sido feita para o homem de cor, como se dizia noutros tempos. Os brancos estariam lá de intrometidos, até nisso lhes tomando o lugar…

No caso dos Estados Unidos, a situação é ainda pior. Os custodiados pelo Estado na América passam dos dois milhões, universo composto por 66% de negros. Seria fundamental saber quantos desses indivíduos receberam assistência jurídica adequada, visto a ampla defesa ser um preceito da Declaração Universal dos Direitos do Homem, originalmente publicada em 1948 e filha da Revolução Francesa, cujo fulgor se espalhou pelo mundo entre 1789 e 1799. O documentário “A 13ª Emenda” (2016), dirigido por Ava DuVernay, ajuda o público leigo a entender e se familiarizar com detalhes do ordenamento jurídico americano, segundo DuVernay intencionalmente falho e propenso a atormentar e incriminar cidadãos pretos.

Lançado em 2020, “Polícia e Ladrão” é uma resposta imediata ao assassinato de Ahmaud Arbery, em fevereiro. Arbery havia deixado seu apartamento para praticar exercícios físicos, momento em que passou a ser caçado por Greg McMichael, 65 anos, na companhia do filho, Travis, 35, e o vizinho deles, William Bryan, 52. Segundo testemunhas, Ahmaud Arbery era perseguido pelos McMichael numa caminhonete, enquanto corria e tentava se esconder. Bryan chegara depois, também numa caminhonete, e ajudara os vizinhos a acabar com a vida de Arbery, aos 25 anos.

Dois mil e vinte foi um ano particularmente sombrio para os negros na América. Cerca de um mês depois do homicídio de Arbery, em 13 de março de 2020, Breonna Taylor foi morta com cinco tiros por um policial branco durante uma abordagem em sua casa, em Louisville, Kentucky, sudeste dos Estados Unidos, num caso que até hoje intriga e gera revolta por ter indiciado apenas um envolvido, Brett Hankinson — e não por homicídio, mas por disparo aleatório, o que colocou em risco a vida dos vizinhos. A execução do ex-vigilante George Floyd, por asfixia mecânica, em 25 de maio de 2020, também levou outro policial caucasiano para o centro do debate sobre o despreparo das forças de segurança, sobretudo no enfrentamento a indivíduos não-brancos, negros, latinos e asiáticos pela ordem, de acordo com a frequência desses crimes. Derek Chauvin, torturador e assassino de Floyd, foi condenado a 22 anos e meio de reclusão, depois de um dos julgamentos mais aguardados e midiatizados da história da Justiça americana.

A morte de Arbery não teve participação da polícia — malgrado atinja a discussão acerca da intolerância contra afro-americanos no cerne —, mas serviu como um melancólico presságio do que veio na sequência. Em aproximadamente oito minutos, mais de trinta artistas e animadores de todo o mundo foram convidados a produzir obras que traduzissem o sentimento de injustiça social, desajuste étnico e violência, baseados num poema que Ware-Hill, o narrador de “Polícia e Ladrão”, havia escrito. O curta abre com a ilustração de Jasmine Kenya, animadora de Louisville, como Breonna, que usa o 2D para desenhar as feições de Ware-Hill, destacando o branco do sorriso do ator, numa mensagem inicial de esperança. Conforme Ware-Hill continua em seu monólogo, fica claro que a memória de tempos felizes é, na verdade, uma nostalgia sonhada por tempos nunca vividos.

Em pleno século 21, ainda resta uma realidade completamente ignorada sobre os obstáculos à integração dos negros americanos, uma das questões mais controversas da sociedade nos Estados Unidos hoje. Resolver as diferenças entre o cidadão comum e quem deveria defendê-lo — e não sair em seu encalço —, é o primeiro passo, e o impreterível.