Suspense dramático na Netflix é o filme mais impressionante, devastador e cruel do último ano

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Viver numa região conflagrada, há décadas refém de concertações políticas que nunca resultam em benefícios reais para o cidadão comum, é o desdobramento mais objetivo de uma guerra sem fim entre Israel e os palestinos. Fundada em 1994 para administrar a Faixa de Gaza e alguns setores da Cisjordânia, as extensões de terra que lhes restaram, a Autoridade Nacional Palestina é hoje uma organização irrelevante, sem respaldo internacional devido ao apoio a facções extremistas como o Hamas e o Hezbollah.

A decadência da Palestina pode ser dividida em algumas fases desde que o rei da Macedônia, Alexandre, o Grande (356 a.C-323 a.C), derrotou Dario 3° (380 a.C-330 a.C), soberano da Pérsia, na Batalha de Isso, momento em que a Palestina é incorporada pelo império alexandrino. A partir daí, esse território vem sendo alvo de reiterados episódios de subjugação; desde 14 de maio de 1948, quando Israel consegue se estabelecer como Estado autônomo do ponto de vista político, econômico e, o principal, militar, tem início para a Palestina uma era de ódio, privação e morte, por sua recusa em dividir domínios que eram só seus com os israelenses, inimigos históricos, que por seu turno, querem seus habitantes não-judeus o mais longe possível — não sem razão.

O drama do povo palestino se replica em escala na vida de quase cinco milhões de pessoas, gente como Mustafá, protagonista de “A 200 Metros” (2020), de Ameen Nayfeh. Vivido por Ali Suliman, Mustafá é a encarnação do absurdo a que chegou a situação do palestino em sua própria terra. Operário da construção civil autônomo, marido devotado e pai amoroso, ele tem de se sujeitar a apresentar uma licença quando precisa ir a Israel, onde a esposa, Salwa, de Lana Zreik, mora com os três filhos do casal. Mustafá teria direito a viver em Israel legalmente, sem constrangimentos de nenhuma ordem, uma vez que é casado com uma cidadã israelense e seus filhos nasceram no país, mas pensa que assim estaria traindo suas origens e, por extensão, traindo-se a si mesmo. Dessa forma, prefere manter um apartamento do outro lado da fronteira, à distância especificada no título do longa, tão perto que podem até se avistar da sacada. Entretanto, a verdade é que estamos em dois mundos opostos.

O conflito em “A 200 Metros” principia quando Mustafá descobre que sua licença expirou sem prévio aviso, num episódio que o roteiro de Nayfeh não explica com a clareza necessária, justo no instante em que partia para uma temporada de trabalho. Pouco depois, o filho sofre um acidente e, então, não há mais o que esperar: a única alternativa é recorrer ao transporte clandestino, sob o risco de ser deportado e ter o passaporte suspenso, sem contar com todos os outros inconvenientes — esses, sim, de fato perigosos — de uma viagem assim, por caminhos mais tortuosos do que ele supõe. Sacrifícios a que um chefe de família consciente de seu papel se inflige sem hesitar, tanto mais sabendo das particularidades do lugar em que vive, onde petardos caem do céu quando menos se espera e homens-bomba dão cabo da própria vida sem maiores pruridos morais, desde que tenham a ilusão de que 72 virgens os esperam num estranho Paraíso.

O deslocamento tem o caráter de uma genuína descida ao inferno, mesmo antes de começar. O espectador acompanha o suplício de Mustafá, que quase implora para que o motorista não espere se completar a capacidade máxima da lotação e saia de uma vez, operação possível graças à destreza do diretor em posicionar a câmera o mais próximo que consegue do protagonista, que por sua vez guia os olhos do público, ou seja, o que ele vê é o que o espectador também vê, restando insolúveis algumas situações do enredo, a exemplo da suspensão do livre trânsito de Mustafá por Israel. A narrativa dantesca que vai se seguir até o desfecho, com a chegada da videomaker alemã Anne (Anna Unterberger), que registra algumas passagens do cotidiano na região, e seu amigo Kifah (Motaz Malhees) — cujo desempenho colabora para a boa qualidade da trama, protagonizando momentos de tensão significativos para a história e captando a atenção do espectador quando se faz necessário algum respiro de humor, ainda que dosado e fugaz — consegue ilustrar a angústia constante de se viver na Palestina do século 21, um lugar cada vez mais dominado pelo atraso, em boa parte fundamentado por motivos religiosos.

Propondo-se a fazer cinema político sem receio de parecer panfletário, Ameen Nayfeh compõe em “A 200 Metros” um trabalho isento, por mais que se obrigue a defender certos pontos de vista. A questão israelo-palestina permanece sem solução imediata no horizonte, mas o que se tem claro depois de pouco mais de hora e meia de filme é que o caminho se alonga muito mais do que a epopeia de Mustafá.