O filme hipnótico e devastador da Netflix que te leva para dentro dele e penetra a alma como uma lâmina

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“Longa Jornada Noite Adentro” (2018) é um sonho, com tudo de delirante, auspicioso e misteriosamente assustador que um sonho pode ter. O tempo no filme do diretor chinês Bi Gan — que toma o nome emprestado da peça de Eugene O’Neill (1888-1953), levada às telas por Sidney Lumet (1924-2011) em 1962 — transcorre como se envolvido num unguento espesso, dando ao enredo um andamento vagaroso, melancólico até, que se concentra nas andanças de Hongwu Luo, vivido por Jue Huang, amalgamando flashbacks e flash-forwards num mesmo todo.

Luo é um homem patologicamente solitário. Seu intuito ao vagar pela cidade chinesa de Kaili e arredores é encontrar a mulher que não sai da sua cabeça, que conhecera não sabe mais em que circunstâncias e de quem não se lembra direito. Essa figura enigmática torna-se para ele um tormento, invade sua vida sem licença, aparecendo-lhe, seja de corpo presente, seja apenas como um espectro, em todos os lugares em que ele estivera antes. Talvez se trate de Kaizhen, mas também pode ser Qiwen Wan, homônima da atriz, personagens de Tang Wei. Todas as atitudes do protagonista são eivadas de uma medida de loucura considerável, desequilíbrio que se agrava com o caos social da própria cidade. Quem é Luo, afinal? O que pode querer com a tal mulher?

Resta claro que a ligação entre os dois é sólida, fora iniciada há muito tempo — noutra vida, talvez — e precisa ser restabelecida o quanto antes. O drama cheio de nuances filosóficas, também cultuado por experimentações técnicas, como um travelling em 3D de uma hora no meio do filme, é sobre fé, perda de fé, a ânsia por se manter alguma sanidade em meio a um cenário que se deteriora em todos os sentidos. As pessoas com quem Luo cruza em sua marcha existencial se revelam grandes perdedoras como ele, mas fazem questão de se iludirem, decerto porque encarar a realidade é um encargo pesado demais. Há quem tenha perdido o pai, quem tenha de viver sob a agonia de não saber o paradeiro de um amigo, quem fuja, justamente por não ter referência de mais nada, e até o cachorro velho, traído pelo faro arruinado pelo tempo. Malgrado tudo aluda a destruição, e o sonho tenha mais cara de pesadelo, há o que, inexplicavelmente, resista.

Bi Gan não deixa o público abandonar Luo, e o espectador torna-se seu companheiro nessa viagem incomum. O personagem de Jue Huang se desloca de todas as formas que pode — anda, dirige e até voa — na esperança cega de (re)encontrar a mulher que habita seu lado mais obscuro, desejoso de estender essa fantasia para sua vida como um todo. Mas não é possível: como “Longa Jornada Noite Adentro” faz questão de enaltecer, o tempo da utopia, por paradoxal que seja, acabou, e nesse particular, o filme é magistral. Poucas vezes no cinema a atmosfera distópica é explorada com tamanha inventividade como por Bi Gan, que compõe um ambiente que a um só tempo fala da pioria de tudo, mas deixa margem, por óbvio, para se idear um futuro menos amargo, quiçá com gosto de maçã. O apuro estético é um elemento valorizado no longa, que chama o espectador a apreciar a beleza impressionista — e barroca em algumas passagens — de locações que evocam o caráter de introspecção da história. São inúmeras as menções a espelhos tomados por vapor, chuvas torrenciais que não cessam nunca, as ubíquas poças d’água que se formam depois do aguaceiro, todas metáforas da efemeridade da vida, que vence sua natureza de eterno, como o desdobramento contínuo e infinito de tramas que atravessam-se umas às outras. O tempo passa. A vida acaba.

Provavelmente, Luo é mesmo um sujeito ingênuo, como ele próprio se define, e até mais: há nele qualquer coisa o impede de crescer, como um Peter Pan pós-moderno numa Terra do Nunca oriental, nada promissora, em que se refugia procurando numa mulher que nem chegara de fato a conhecer sua heroína, a companheira do herói que pensa ser. Sua personalidade vesana é explicitada na sequência em que vai parar numa caverna — recurso pictórico que remete ao asilo dos perigos da realidade e, portanto, ao delírio, desde o mito eternizado pela pena do filósofo grego Platão (428 a.C-348 a.C) — e disputa uma partida de pingue-pongue com um garoto sem nome de 12 anos, interpretado por Hong-Chi Lee. Como ganha o jogo, o menino o conduz numa lambreta até o início do caminho que o levará de volta para casa. Freud puro.

Conforme sabemos, as memórias nunca são só o que aconteceu, mas também um ajuntamento de tudo o que gostaríamos que se tivesse passado em nossas vidas — ou ao menos, um melhoramento da realidade. Destarte, “Longa Jornada Noite Adentro” é ficção, mas parece um experimento científico, por meio do qual Bi Gan entra na alma de alguém e a devassa quadro a quadro. E ainda resta muito a dizer.