O melhor filme espanhol de 2021 é um tapa na cara e acaba de estrear na Netflix Divulgação / Atresmedia Cine

O melhor filme espanhol de 2021 é um tapa na cara e acaba de estrear na Netflix

O coming-of-age é, por definição, o gênero com que o espectador costuma se identificar mais, afinal todos já fomos adolescentes. É impossível passar incólume por essa fase da vida; é durante a adolescência que usualmente cometemos nossos maiores erros — fruto, em grande medida, da inexperiência, da falta de maturidade — e temos nossas desavenças com pai, mãe, amigos, o mundo (pelo mesmo motivo). Isso posto, há que se fazer a consideração fundamental: há maneiras e maneiras de se atravessar o inferno de uma etapa da vida pautada pela indefinição, ao longo do qual se ouve com todas as letras que não se é mais criança, ao passo que também falta muito para se vir a ser um adulto.

Certos estavam Nelson Rodrigues (1912-1980) e Pablo Picasso (1891-1973) quando disseram, cada qual a seu modo, que a juventude é um presente de grego que nos dá a vida. Usando o argumento do trauma da rejeição, vencida da pior maneira possível, o diretor Daniel Morzón põe no centro de “As Leis da Fronteira” (2020) o debate nunca superado acerca da inadequação juvenil. Adaptado do romance homônimo de Javier Cercas, publicado em 2012, o filme de Morzón refaz a trajetória de Ignácio Cañas, o Nacho (ou Oclinhos), um garoto de 17 anos que se vê cercado pela impossibilidade de ser como os outros, ao mesmo tempo em que não consegue impor-se como é. Nacho parece se conformar com a ideia de servir de saco de pancadas até que transcorra a eternidade do tempo que lhe resta para que possa, de fato, ser considerado um homem. Em meio ao turbilhão de sentimentos que o colhe, surge em sua vida a figura de um pretenso anjo protetor e a garota que o acompanha, a musa de quem se vai enamorar perdidamente pela primeira vez, enquanto trabalhava em um fliperama, no fim dos anos 1970.

Nacho, Zarco e Tere, o trio de protagonistas interpretados por Marcos Ruiz, Chechu Salgado e Begoña Vargas, dá à narrativa o encaminhamento certo, com destaque para a performance de Ruiz, plena das tantas gradações que um tipo complexo como Nacho exige. Não há nenhuma dificuldade em se delimitar o instante preciso em que o personagem resolve dar um basta à rotina de humilhações — a exemplo de uma das sequências iniciais do longa, em que o rapaz acha melhor não revelar por que se afogara — e integrar a gangue liderada por Zarco, de que Tere também é membro. Experimentado delinquente de Chinatown, o subúrbio barra-pesada de Girona, na Catalunha, Nacho agora desfruta da redoma de proteção que o bandido lhe oferece, à medida que dá início a uma carreira de crimes, vícios e a vivência do sexo, ao perder a virgindade com a personagem de Vargas, namorada de Zarco. Nesse momento, começa a se descortinar o arco dramático mais estimulante em “As Leis da Fronteira”, com um Zarco perturbadoramente à vontade diante do assédio da parceira ao novo fora-da-lei.

O quinquillero, ou quinqui, subgênero espanhol celebrado pelos enredos que se desdobram sobre ações criminosas, se tornou muito popular entre as décadas de 1970 e 1980, justamente onde se situa o roteiro de Jorge Guerricaechevarría, também autor de “O Bar” (2017), dirigido por Álex de la Iglesia. Como no suspense pontuado por humor negro de 2017, em “As Leis da Fronteira” o trabalho de Guerricaechevarría se caracteriza por uma narrativa muito bem estruturada, conduzida sem experimentações de ritmo, na qual todos os personagens — inclusive os incontáveis coadjuvantes — têm a oportunidade de dizer a que vieram. Ainda empreendendo a áspera transição de um longo governo ditatorial, encabeçado pelo caudilho Francisco Franco (1892-1975), entre 1939 e 1975, quando Franco morre, a Espanha é registrada, da mesma forma que Nacho, como um país à procura de identidade, em que a polícia não tinha nenhum pejo em empregar a tortura para extrair a confissão de suspeitos, a exemplo do que acontece com Piernas, de Daniel Ibañez, mais um dos delinquentes chefiados por Zarco.

O reencontro dos três, cerca de um ano depois da prisão de Zarco — sequência em que a maquiagem, um dos grandes defeitos técnicos de “As Leis da Fronteira”, torna-se inescapável —, mostra que a juventude pode não ser toda a maravilha que dela se canta. Principalmente quando não se dispõe de pais atentos (e com contatos entre quem dá as cartas num mundo comandado por homens nada ingênuos).