O mais belo filme da história do cinema indiano está na Netflix

O mais belo filme da história do cinema indiano está na Netflix

Ao longo dos anos, Bollywood foi conseguindo imprimir autenticidade a suas produções, privilegiando cada vez mais narrativas que retratassem o dia a dia do povo indiano, marcado por situações sui generis que inspiram de thrillers psicológicos bem temperados com elementos de terror, a exemplo de “Kahaani” (2012), de Sujoy Ghosh, a musicais deliciosamente oníricos, caso de “O Grande Passo” (2020), dirigido por Sooni Taraporevala, e  “Como Estrelas na Terra” (2007), de Aamir Khan e Amole Gupte.

No colorido neobarroco de “Como Estrelas na Terra”, cheio dos vistosos exageros que passaram a caracterizar o cinema hindu, Aamir Khan, que protagoniza grandes sucessos bollywoodianos — além do filme de 2007, Khan pode ser visto em “3 Idiotas” (2009), dirigido por Rajkumar Hirani, e  “Lagaan: Era Uma Vez na Índia” (2001), de Ashutosh Gowariker, para se ficar nos mais conhecidos —, sempre dá seu toque pessoal a cada trabalho. Debutando como cineasta em “Como Estrelas na Terra”, o ator leva à tela um enredo que funde um tema denso, de importância essencial, com cenas em que o componente musical é usado com o propósito de tornar a mensagem mais fluida, acessível a toda sorte de público. A empreitada, de ousadia muito bem medida, faturou todos os prêmios nacionais — e nem se esperava que a Índia tivesse outra indicação para representar o país no Oscar, competindo pela categoria de Melhor Filme Estrangeiro. Contudo, essas ambições não se concretizaram: o longa, dirigido pelo próprio ator principal, com roteiro de Gupte, nem chegou a pisar no Teatro Dolby. O vencedor foi o austro-alemão “Os Falsários” (2007), de Stefan Ruzowitzky, a história de Salomon Smolianoff, que fabricava cédulas de libras e dólares a fim de continuar vivo num campo de concentração durante a ascensão do nazismo, em 1936. A derrota só fez o interesse em torno do filme crescer ainda mais, e, por outro lado, voltou à baila a conjetura sobre uma possível discriminação de Hollywood contra sua homóloga asiática, não de todo sem cabimento.

É muito fácil para uma criança perder-se nos castelos de fantasia que somente ela acessa, principalmente se não orientadas por pais atentos e sensíveis. A partir desse ponto, aumenta a importância de Darsheel Safary, que divide com Aamir Khan — cujo personagem só entra na metade da história — os louros da trama. O Ishaan de Safary é um menino como outro qualquer, com talentos e dificuldades de um menino como qualquer outro. Atravessando um momento particularmente obscuro da vida escolar, não consegue se concentrar nas lições, a ponto de sequer memorizar as letras do alfabeto, que dançam na sua cabeça, como ele diz. Seus professores não o toleram mais, o restante dos alunos só o vê como mote para a próxima humilhação e o pai, aturdido, só encontra uma saída: despachá-lo para outro colégio, em regime de internato. O menino logo se entrega a um estado letárgico que vai lhe tolhendo todas as vontades — e é assombrosa a interpretação do ator-mirim, que transmite a ideia de alheamento de Ishaan à perfeição. No estranho lar que lhe arrumaram, surge para ele Nikumbh, vivido por Khan. O professor substituto de artes percebe o que de fato está havendo e toma o partido do garoto, que, por sua vez, corresponde e, dessa forma, ganha um novo sentido para sua vida.

A performance de Darsheel Safary é o que faz o espectador se condicionar a levar a cabo a espera pelo desfecho, depois da odisseia de Ishaan se desdobrar por quase três horas de projeção, o que faz com que o entrecho de “Como Estrelas na Terra” se torne previsível em muitas circunstâncias. Safary supera o desafio de emprestar a Ishaan o carisma para o personagem vencer suas batalhas sem precisar da piedade de ninguém, tampouco da audiência, objetivo que Vipin Sharma, por exemplo, o ator que interpreta Nandkishore, o pai do protagonista, não alcança. O tipo encarnado por Sharma resvala com gosto no caricato, e tudo na subtrama fica impregnado de uma atmosfera de melodrama muitos tons acima de recomendável. Felizmente, como que por um milagre de Vishnu, aparece Aamir Khan, a fim de dar o devido realce ao ótimo trabalho do petiz.

É uma verdade estabelecida do cinema que dirigir crianças e animais pode se revelar uma armadilha perigosa. Contudo, em havendo a química que os dois protagonistas apresentam, em cena e no momento em que um tem de se submeter ao outro, também podem se sacramentar parcerias inesquecíveis. Mérito em igual medida de Aamir Khan e Darsheel Safary, partes de uma constelação que faz “Como Estrelas na Terra” brilhar forte.