O filme violento e cativante da Netflix que levará você a uma viagem de beleza e dor

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O tema de pessoas que por razões ideológicas, políticas, religiosas, econômicas são forçadas a abandonar o lugar onde nasceram suscita uma discussão bizantina quanto a se especular até que ponto deve ir o cinema na exploração de dramas tão íntimos e tão complexos do homem. E tudo toma uma dimensão ainda mais enternecedora se o cenário envolve crianças.

O épico de guerra “Os Últimos das Filipinas” (2016) já havia proporcionado a Salvador Calvo uma indicação ao Goya, láurea máxima do cinema espanhol. Em “Adú” (2020), Calvo volta a dar uma mostra de sua perspicácia ao escalar Luis Tosar e Alvaro Cervantes, com quem trabalhara na produção de 2016, a fim de viverem dois dos três protagonistas de sua nova trama. O terceiro ainda era uma incógnita, mas a inexperiência de Moustapha Oumarou — em nítido contraste com o tirocínio dos outros dois — foi a aposta certa.

Oumarou, que vive o personagem-título, se vê jogado no centro de uma arena que lhe exige tudo. Adú, que tenta deixar a África com a irmã Alika, de Zayiddiya Dissou, em busca de uma vida melhor, cruza fronteiras e clama por ajuda do outro lado do mundo para sobreviver. A inocência do ator beninense — e a mimetização entre sua vida real e a do personagem adquire no enredo um status de exercício cênico estimulante — é fundamental no intuito de imprimir a profundidade que o coming-of-age de Calvo pretende, provocando a reflexão sobre a nova vida que Adú pode vir ser obrigado a assumir, não lhe sendo dada a possibilidade de optar entre o ser humano que ainda não se tornara e uma outra pessoa.

O primeiro plot twist do roteiro de Alejandro Hernández, que lança Adú e Alika no anticlímax que se segue, gera por sua vez um conflito de vulto. Com a ajuda inesperada de Gonzalo, vivido por Tosar, agente-florestal e ambientalista envolvido com a causa da preservação dos elefantes de Camarões, na África Central, os dois conseguem chegar à casa de uma parente afastada. A vida de Adú, até então um garoto completamente negligenciado — pela família, pelo Estado, pela vida —, começa a ter alguma margem de conversão, o que ocasiona novos debates filosóficos acerca de sua condição, uma vez que era um invisível para o sistema e de súbito passa a dispor de alguma coisa parecida com a dita vida normal.

Alvaro Cervantes, por sua vez, encarna um antagonista cuja personalidade dúbia reflete a densidade do arco dramático principal de “Adú”. Patrulheiro encarregado de vigiar as fronteiras da Espanha com a África Setentrional e coibir a entrada de imigrantes ilegais no país, Mateo presencia a morte de um dos potenciais invasores, enquanto tentava escalar a cerca e realizar a travessia. A partir desse momento, o diretor usa o argumento da morte que se impõe sobre a vida em circunstâncias que, sob condições normais, não teria razão de ser, aproveitando esse gancho para fazer um paralelo entre as vidas de Adú e Gonzalo, ambos sofrendo uma determinada influência da desdita, os dois indivíduos alijados de uma vivência afetiva em nome de uma causa: o agente de modo calculado, já que mesmo inconscientemente ama mais os elefantes que sua filha Sandra, papel de Anna Castillo, até porque entende os paquidermes muito melhor que a ela. Já Adú não teve escolha; inserido junto a Alika, e mais uma irmã recém-nascida num contexto miserável desde sempre, a solução razoável encontrada pela mãe no empenho de assegurar um futuro quiçá digno aos dois é despachá-los ao primeiro vigarista que promete fazê-los conseguirem ingressar no continente europeu e, por conseguinte, numa nova vida. A sequência em que Adú e Alika se esforçam para invadir o avião que sai de Camarões pouco antes da aeronave levantar voo e os momentos de terror por que passam depois são um dos pontos altos do filme, complementado, já próximo ao desfecho, pela passagem em que o protagonista arrisca cruzar a fronteira pelo oceano — sem Alika, que morre de uma maneira brutal —, é resgatado por Mateo e reencontra Massar, de Adam Nourou, amigo que fizera ao longo de tantos descaminhos.

Ao contar três histórias sem, no entanto, concluir nenhuma — pelo menos não de uma maneira convencional —, expõe, também de maneira nada previsível, a tragédia do fluxo migratório ao redor do mundo, uma chaga do mundo contemporâneo que perdura década após década. O que, por sua vez, só acontece pela insana resistência do homem em aceitar quem não é capaz de ser igual à maioria.