O filme mais triste de todos os tempos está no catálogo da Netflix

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Em determinadas circunstâncias, a arte consegue retratar com fidedignidade espantosa as grandes deficiências da civilização. O isolamento de um povo, motivado por questões culturais, políticas, religiosas ou por esses e tantos outros fatores, amalgamados de tal maneira que torna-se impossível dissociá-los — e tampouco apreender a complexidade social por trás de um país —, passa a se constituir uma verdadeira esfinge, que ameaça devorar quem dela se aproxima querendo decifrá-la.

Milagre na Cela 7”, drama que conta a história de um pastor de ovelhas com atraso intelectual que precisa provar sua inocência ao ser preso por um crime que não cometeu, se presta a dirimir um pouco a névoa de mistério sobre a sociedade turca, mormente no que diz respeito ao ordenamento jurídico e o sistema carcerário daquele país, mas não só. A produção, de 2020, roteirizada por Özge Efendioglu e Kubilay Tat e dirigida por Mehmet Ada Öztekin, é o remake de uma dramédia sul-coreana homônima lançada em 2013, o que evidencia a urgência inextinguível de se discutir o problema que lhe serve de mote central.

No filme, Memo, o pai solteiro vivido com total entrega por Aras Bulut Iynemli, cria a filha Ova, de Nisa Sofiya Aksongur, ajudado pela avó, Fatma, personagem de Celile Toyon Uysal, enquanto luta contra uma doença mental que o aprisiona num mundo paralelo, mas incapaz de desencadear nele algum impulso facinoroso. Certa feita, Memo se acha sozinho num lugar ermo com a filha de um oficial do pequeno vilarejo em que vivem, na Anatólia, costa do mar Egeu. Numa cilada do destino, enquanto brincam próximo a um despenhadeiro, ela cai do precipício e o protagonista, apesar de não haver testemunhas, é imediatamente culpado pela morte da menina e, portanto, preso em flagrante. Algum tempo depois, é condenado à morte e passa a aguardar o dia de sua execução no cárcere, enfrentando a abjeção e a violência física dos outros detentos, esses verdadeiros monstros, mas que sentem a culpa lhes pesar um pouco menos se se miram pelo delito supostamente perpetrado pelo camponês. 

O maniqueísmo da trama decerto joga contra ao insinuar que o pai da garota morta seja o grande vilão por se tratar de um homem poderoso, mas Memo é um personagem carismático demais para se perder em meio a tacanhices como essa. É tocante ver a forma como ele se relaciona com os colegas de cela, que logo se convencem de que o personagem de Bulut Iynemli é mesmo um pobre-diabo, tão inocente quanto a menina que morreu, a ponto de nem se insinuar em seu pensamento delirante a mais pálida ideia de dar azo a uma atrocidade como aquela. Os prisioneiros começam a ver naquele ser frágil algo mais parecido com um cãozinho que se perde de sua matilha do que propriamente com uma pessoa e fazem dele um mascote, uma criatura em que podem despejar sua necessidade de afeto sem receio de mal-entendidos.

É um pouco vaga que espécie de desencontro teria acontecido na vida de Memo para que ele se visse na obrigação de criar sozinho a filha. Ao que a trama diz nas entrelinhas, a partir de uma conversa obscura entre Memo e a mãe de Ova, o protagonista não é o pai biológico da menina: a mulher aceitara casar-se com ele, um homem de segunda categoria, como o povoado o encarava, para escapar à execração pública de ser mãe e não ter marido, uma vez que não era casada com o sujeito que a engravidara. Tão repentinamente quanto entrou, a personagem deixa a história, uma das barrigas do roteiro, bem como torna-se incômodo que ninguém se envolva na vida de Memo e Ova, como se a deficiência intelectual dele tivesse qualquer coisa de nefando ou, pelo contrário, se isso se constituísse uma credencial de bom pai por si só. Seu comportamento para com a menina mais parece o de um irmão mais velho, no máximo de um tio, o que deveria suscitar a preocupação de entidades análogas ao Conselho Tutelar. Com a morte de Fatma, Ova é encaminhada aos cuidados da professora Mine, interpretada por Deniz Baysal, quando o enredo ganha um respiro de doçura, ao passo que Memo vai aprendendo a se relacionar com os demais presos, em especial com Askorozlu, de Ilker Aksum, mafioso que muda seu juízo sobre o protagonista quando este lhe salva a vida depois de uma tentativa de vendeta. Askorozlu retribui promovendo o encontro entre Memo e a filha, o que fomenta a grande reviravolta da trama.

Como em “A Lista de Schindler” (1993), de Steven Spielberg, o argumento do anti-herói que livra da morte um indivíduo por quem, à luz da lógica das circunstâncias, deveria sentir repulsa, é explorado com denodo e sensibilidade por Mehmet Ada Öztekin, quando, a partir de então, vislumbra-se alguma chance de remissão para Memo, o que se pode corroborar na sequência em que, anos depois, Ova já adulta e vestida de noiva, segura o presente que um dos homens que compartilhava a cela 7 com o pai lhe dera. Memo não aparece — já teria morrido, visto que portadores de deficiência mental vivem menos? —, mas subentende-se que o protagonista pôde fugir da Turquia e refazer a vida noutro país.

Ao falar sobre as armadilhas da vida num mundo ofuscado pelas luzes frias do poder, tanto mais perverso para alguém que não dispõe da defesa necessária para enfrentá-lo de igual para igual, “Milagre na Cela 7” toca em questões que continuam a merecer nossa atenção, como a fragilidade da vida, suscetível a um abalo inesperado a qualquer momento; a importância da liberdade, que, clichê dos clichês, só se valoriza quando não se priva mais dela; e o cuidado que se deve dispensar a pessoas com limitações cognitivas, cujo convívio quase sempre se revela uma experiência fascinante. O filme se revela uma história que, inegavelmente, encerra grande consternação em essência, mas traz alento em igual medida ao nos fazer sonhar com dias mais ensolarados para a humanidade, desde sempre presa nas tormentas que ela mesma fabrica.