O melhor filme de romance dos últimos dois anos está no Amazon Prime Vídeo

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Os chamados filmes de amor se constituíram um gênero à parte na história do cinema. Os romances levados às telas logo conquistam plateias do mundo todo, se eternizam no inconsciente coletivo e não raro se tornam parte da cultura pop. Como algumas canções — e certas bandas.

Representante à altura de uma das categorias mais queridas pelo público, “Yesterday” (2019), comédia romântica que se assume como tal, se vale do mote de falar do conjunto mais famoso de todos os tempos a fim de celebrar o amor e fazer algumas perguntas. No filme nada fica sobrando, graças à precisão do roteiro de Jack Barth e Richard Curtis — é verdade que a parceria dos dois degringolou em barraco, mas este articulista não se presta a fofoca. O que importa é o que Danny Boyle, que nunca se permite soluções fáceis e vence o mais do mesmo a qualquer custo, faz com o texto da dupla. O britânico sabe quando é hora de inovar (e mesmo revolucionar) num trabalho e em que medida, e percebe o momento em que deve enaltecer o trabalho de seus colaboradores. No caso de “Yesterday”, o diretor opta por ressaltar o protagonismo dos Beatles, coração do roteiro, merecidamente homenageados numa trama que flerta desabridamente com o realismo fantástico.

A história se desenrola sem muito rodeio, e de imediato se fica sabendo que, por uma falseta tecnológica qualquer, a humanidade  acabara de sair de uma interrupção do fornecimento de energia que implicara também numa amnésia que se impõe a todos — tema que renderia um filme por si só, uma vez que o argumento do homem cada vez mais dependente da inteligência artificial, integrado quase fisicamente a dispositivos de toda natureza, é uma realidade inescapável. Jack Malik, vivido com brilho pelo indo-britânico Himesh Patel, músico semiprofissional que tem de se desdobrar para não abdicar do grande sonho de, algum dia, fazer sucesso como artista, parece estar perto de desfrutar, afinal, da maior chance de sua vida: ele é a única pessoa no mundo a se lembrar que os Beatles existiram. Ou seja, pode dispor da obra dos Fab Four à vontade, sem pagar royalties, sem nem mesmo mencionar o fato de que “A Day in the Life”, executada na hora do blecaute, “Let it Be”, “Here Comes the Sun”, “The Long & Winding Road” e, claro “Yesterday”, que dá nome ao filme, já têm dono.

Um dos pontos altos do longa é sua abordagem propriamente humorística. Patel se destaca na história conforme Malik se dá conta de que ele reúne todas as condições a fim de ocupar o posto de maior celebridade viva do planeta, mais popular que Jesus Cristo, segundo John Lennon (1940-1980) disse sobre o conjunto cuja fama personificara. Antes obedecendo à risca o que esperavam dele — o uso de ternos bem cortados, penteados sóbrios e um sorriso meio falso, igualzinho aos outros três integrantes da banda, o guitarrista George Harrison (1943-2001), Ringo Starr, que atacava a bateria, e o multi-instrumentista Paul McCartney —, foi a figura messiânica de um Lennon profético a que sobressaiu. O rapaz magricela, pálido, de cabelos e barba compridos, que dizia que amor era tudo de que precisávamos, que pedia para que imaginássemos o mundo como uma imensa pátria de cidadãos irmanados uns aos outros, se tornou um dos grandes símbolos de sua geração, jovens que se viam tolhidos por arroubos totalitários de um lado e a ânsia por liberdade, de outro. O líder dos Beatles, dado o contexto em que surgira com sua bandinha de garagem, despretensiosa, mas sem prévio aviso alçado a ídolo mundial, se deixara seduzir fácil demais pelos encantos do showbizz. Cerca de 10 anos depois, arrependido de suas blasfêmias — e farto de ter de servir de modelo a quem quer que fosse —, John Lennon dera o sonho por acabado.

Se o vate da juventude transviada houvera por bem se assumir como um mortal como outro qualquer, isso era com ele. Malik quer ser o novo Lennon a todo custo e, conforme as coisas se encaminham em “Yesterday”, pode mesmo usurpar a identidade e a trajetória do astro. Justamente nessa altura da história, Boyle fomenta, com sutileza, outras das questões essenciais de “Yesterday”. O protagonista seria mesmo capaz de emular com aquele cantor de Liverpool, malgrado em verdade não ser ele? Malik se tornaria tão amado quanto Lennon mesmo não sentindo aquelas canções como os Beatles as apresentavam? Nem seria necessário dizer, mas o mundo mudou muito desde que os Beatles se separaram. Da formação original (e única), restam vivos apenas Paul McCartney e Ringo Starr, os dois sóbrios quanto a se expor e tecer comentários sobre a parceria musical mais exaltada da história — muito mais Ringo que McCartney, que vira-e-mexe revela um ou outro segredo de polichinelo, como o de que foi Lennon o responsável pelo fim da banda (e quem não sabe?!). De maneira muito delicada, frise-se, o filme deixa claro que nada nunca mais será como antes, que ninguém será um John Lennon redivivo, e que cada um deve encampar suas próprias batalhas.

Como obra de arte, “Yesterday” é primoroso — ainda que, lamentavelmente, uma vez mais enverede para o lodo da difamação, sob a acusação de um suposto plágio — e ainda conta com momentos impagáveis, sublimados pelo desempenho de Lily James como Ellie, empresária de Jack Malik e a única que sempre apostou nele (talvez por estar apaixonada). Há que se lembrar também a participação especial de Ed Sheeran, que o convida a abrir uma apresentação sua, mas não faz ideia de quem o protagonista seja.

Como a humanidade nunca passa pelos mesmos eventos duas vezes — a segunda ou é tragédia ou é farsa —, Jack Malik entra com folga para o rol dos grandes safados do cinema. E, mesmo assim, a gente gosta dele.