O filme de ficção-científica mais filosófico e avassalador do cinema recente, está no catálogo da Netflix

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“Ex-Machina: Instinto Artificial”, de Alex Garland, remete o espectador a um cenário que todos nós conhecemos muito bem — no cinema e fora dele — há, pelo menos, um quarto de século. A internet, fruto de um experimento militar em 1969 que visava ao compartilhamento seguro de dados em tempo real foi tomando corpo, sendo aprimorada, testada à exaustão, até ficar no ponto para invadir o cotidiano de 99% dos habitantes do globo, independentemente da classe social a que pertençam, da cor de sua pele, da fé que professam. Considerando-se que desses, apenas 60% dispõem de um ponto de conexão eficiente em casa, chega-se à conclusão óbvia de que a inteligência artificial, em sua natureza mais rudimentar, não é assim tão acessível.

Sempre insatisfeito, sempre desejando, sempre buscando o que não pode ter, o homem acaba conseguindo realizar seu sonho profano de emular a onipotência divina. À medida que inventava demandas e criava novas necessidades, foi preciso desenvolver também novos jeitos de resolver os problemas que o próprio ser humano gestava. Foram surgindo objetos, mecanismos, programas, dispositivos antes completamente alheios ao dia a dia do cidadão comum. Esses aparatos, capazes de expandir a realidade, possibilitar ao indivíduo experiências que sequer imaginava, numa espécie de prolongamento de sua consciência mesma, adquiriram o status de meros eletrodomésticos, tão banais se tornaram. A partir de então, tudo o que a velha musa cantava tinha de cessar, para que novos anseios fossem alimentados, novas carências supridas, e nos entulhássemos de outras parafernálias.

O pavor do homem frente à decrepitude e ao fim da vida é presente na história da humanidade desde o princípio dos tempos. Talvez para nos inspirar a todos, fiéis ou não, o “Gênesis”, no Antigo Testamento bíblico, conta a história de Matusalém, patriarca da humanidade e avô do célebre Noé, que teria vivido 969 anos. Como seria possível a Matusalém alcançar tal proeza, visto que não se dispunha nem de indícios da medicina como a conhecemos hoje — moderna, arrojada, fundamentada em pesquisas que levam anos para serem concluídas — e muito menos da tecnologia de ponta que cerca (e sufoca) sociedades ao redor do mundo em campos os mais diversos, da medicina propriamente dita à biologia, passando pela engenharia e mergulhando na indústria automobilística e de cosméticos, por exemplo, é um mistério da fé. A verdade é que o homem pós-moderno, como o vetusto personagem do “Gênesis”, sempre reivindicou sua cota de eternidade. E não é preciso ir longe para testificá-lo, dado o caráter simples de instrumentos que auxiliam-no quanto a burlar a imposição do envelhecimento e, destarte, do término da vida — em proporção maior ou menor —, como cadeiras de rodas, próteses ósseas, óculos de grau, tintas de cabelo.

Partindo do mote de Caleb, vivido por Domhnall Gleeson, o programador jovem (e, por conseguinte, inexperiente; talvez até tolo) e dotado de talento e inteligência invulgares que é escolhido mediante sorteio para se hospedar na casa do chefe, Nathan, o bilionário dono de uma startup de pesquisas para o aperfeiçoamento da interação entre o homem e sistemas eletrônicos, “Ex Machina” se aprofunda na questão ética por trás das condutas de um e de outro. Logo resta insofismável que Nathan é um psicopata clássico, dissimulado, perspicaz, manipulador e perigoso; mas e quanto a Caleb? O que o teria levado a trabalhar para um tipo tão abjeto? Será que ele é tão inocente quanto aparenta? Não seria o discurso em prol da defesa da ética em seu ofício, como se vai ver no decorrer da trama, mero disfarce de alguém que, tomado de despeito por não conseguir se tornar como o patrão — ou por não ter a coragem para tanto — se consagra a desqualificá-lo?

O propósito de ida de Caleb para o paraíso claustrofóbico de Nathan era justamente dar-lhe a oportunidade de participar de um experimento que este denomina de revolucionário. Seu chefe inventou uma forma de vida não-natural que guarda a sete chaves, exatamente por assumir o risco de sua empreitada — provavelmente o único lampejo de sensatez do personagem de Oscar Isaac. Nathan quer com isso avaliar a competência de seu funcionário, aproveitando para também saber o quão proficiente conseguira ser ao dar vida a Ava, a humanoide submissa e algo misteriosa de Alicia Vikander. Para dar azo a essa etapa do projeto, será aplicado o teste de Turing, que consiste em verificar o quão próximo de um comportamento naturalmente humano uma máquina pode chegar, esquematizado pelo cientista da computação britânico Alan Turing (1912-1954) que, ao descriptografar por meio de seus estudos as mensagens nazistas durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), livrou da morte cerca de 14 milhões de pessoas. Turing ganhou um digno perfil no excelente “O Jogo da Imitação” (2014), do norueguês Morten Tyldum.

Ao fundir a perfeição de circuitos computadorizados e frios algoritmos a um rosto meigo e um corpo que conclama ao prazer, Nathan, por meio de Ava, cercara Caleb. É impossível para o programador fugir a seus encantos, uma vez que a ginoide tinha em si tudo o que ele poderia desejar numa mulher de carne e osso. As sequências em que Caleb e Ava passam a se relacionar mais intimamente despertam no público uma sensação de calmaria, de placidez — que é apenas isso, uma sensação —, envolvendo a audiência, ingênua, num jogo cujos próximos lances alguns já consigam antecipar. Como numa partida de xadrez, Ava retrocede e avança, vai para a frente e volta, se movimentando a fim de, com a toda a sutileza, mostrar quem está no comando. Seduzindo Caleb como uma mulher real, a fembot faz com que o hóspede de Nathan se deixe vencer, finalmente, por suas fantasias. E, então, ele se perde definitivamente.

Em seu Tractatus Logico-Philosophicus, o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951) defende que o mundo jamais seria representado à perfeição por linguagem nenhuma, dada a sua vastidão, sua pluralidade, sua natureza fundada no caos. O máximo que o homem seria capaz de atingir é o que ele mesmo conseguira apreender do mundo, ideias que tocam não só o real como boa parte — para não dizer a maior parte — do imaginado e mesmo do quimérico. Em sendo assim, o mundo para Wittgenstein é um simulacro de mundo, isto é, a pálida noção que dele temos, e nisso se baseia sua teoria pictórica do significado. Se o mundo como o conhecemos é só o mundo como o conhecemos, como se poderia classificar a outra vida que se nos apresenta por meio da realidade virtual? Uma encarnação do sonho? Uma vida inventada? Qualquer das duas hipóteses poderia ser tomada por verdadeira, desde que ninguém nunca ousasse afirmar que há alguma chance de uma se amalgamar ao outro — fora do cinema, é claro.

Se Caleb fosse um leitor de Wittgenstein, saberia que mesmo a banal sugestão de um romance entre Ava e ele não seria nada além de loucura. Ava, por evidente, se tornara muito mais esperta que Nathan, já que concentrava em seus sistemas todos os dados e imagens da web, capacidade que o próprio Nathan lhe conferira. Talvez movido pelo desejo inconsciente de dar termo ao vazio de sua vida — que nem seus bilhões de dólares tiveram o condão de preencher —, o magnata permitira que a criatura matasse o criador, o Deus ex machina sugerido no título, o senhor a partir do servo. Caleb se perde duplamente; condenara-se quando passara a deixar que Nathan exercesse sobre ele uma influência que não sabia qualificar, já que o chefe era um completo estranho — mas um estranho bem-sucedido — e sua condenação tornou-se de fato uma sentença de morte no momento em que se deixa levar pela astúcia sobre-humana (e diabólica) de Ava, que ele sabia originada da mente patologicamente descompensada do chefe. Num dos trechos mais aterradores do cinema contemporâneo, assiste-se ao triunfo de Ava, que deixa o calabouço de luxo em que era confinada por Nathan, a essa altura já liquidado por ela, e sai rumo à civilização. Sem olhar para trás, deixa Caleb trancado para sempre naquele Éden decaído e vai realizar seu sonho de passar bons minutos contemplando a multidão no cruzamento de uma metrópole, pronta para, silenciosamente, dominá-la. Tirando todo o proveito da natureza humana de que agora está legitimamente investida, a mesma natureza humana de que os dois homens abdicaram com tanto empenho.

A máquina venceu.