A literatura de Minas Gerais de roseiras, morros e angústias

A literatura de Minas Gerais de roseiras, morros e angústias

Se por acaso existe um enigma brasileiro, ele é a região onde se situa Minas Gerais. Um espaço para além das enormes serras, como a Mantiqueira, que no passado criaram uma barreira natural para quem vinha de São Paulo e do Rio de Janeiro. O isolamento permitiu que surgisse uma cultura própria, barroca numa certa época, modernista em tempos mais recentes. Para Silviano Santiago, um dos seus maiores conhecedores, Minas é na verdade um “enclave arcaico” que assusta o restante do Brasil.

No século 20, acrescenta Santiago, o espaço mineiro ficou no meio do caminho da modernidade sonhada de Brasília e do país tradicional, oficial, cosmopolita, que era o Rio de Janeiro. Creio que se trata de um universo geográfico e cultural com a característica dos silêncios, discretíssimo na aparência, famílias enlouquecidas e violência nas pequenas relações sociais, tão bem retratado por Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, Pedro Nava, Cyro dos Anjos e Autran Dourado.

A literatura produzida por quem veio desse “enclave” é construída de meios tons, quase sussurros, um bordado de palavras, mesmo na exuberância de obras como “Grande Sertão: Veredas”. O não dito, o que se fala pelo canto da boca quase fechada, tem mais relevância do que os berros. Os gritos são surdos, sem emissão de sons, porém com a boca aberta que mostra um desespero. Podem ser a “arte de puxar angústia” de Fernando Sabino ou as memórias em forma de um “baú de ossos” em Pedro Nava.

A mais recente peça do imaginário mineira foi lançada em 2021, em pleno confinamento da pandemia. Silviano Santiago publicou “Menino sem Passado”, o primeiro dos três volumes de suas memórias. Cobrindo os anos de 1936 a 1948, o autor reconstrói sua infância na cidade de Formiga (MG) e intercala a narrativa com episódios de sua chegada a Paris para estudar na década de 1960. Um dos pontos fantásticos é a história de seu pai, jovem viúvo, que plantava rosas na casa da família.

Menino sem Passado
Menino Sem Passado, de Silviano Santiago (Companhia das Letras, 464 páginas)

O plantio de algo prosaico é a deixa para Silviano traçar a complexa genealogia familiar — sempre representada por árvores, galhos e ramos, assim explicando graficamente quem veio antes e depois. O narrador das memórias acrescenta um conceito: os enxertos, como aqueles das roseiras do pai. O enxerto nunca é natural, é uma intervenção humana. Pode-se criar até uma planta nova, híbrida. No caso das famílias, surgem novas relações, feitas a favor da ou contra nossa vontade.

“Minha árvore genealógica, insisto, é duplo arremedo de árvore único e singular. É feita de multidão de galhos que, por enxerto, se multiplicam em inesperadas arvorezinhas suplementares que se reproduzem sob a forma de bonsais”, diz Silviano.

Pela vida, penso eu, os amigos são também enxertos, plantas diferentes que se juntam a nós. Não por acaso Silviano Santiago escreveu “Mil Rosas Roubadas” (2014), para contar a história de sua amizade-enxerto com o produtor musical Ezequiel Neves, o Zeca, morto em 2010. Juntando os dois livros, penso que “rosas roubadas” também são os enxertos das amizades que construímos. Roseiras que não têm dono e estão nos jardins públicos, ou seja, as famílias que escolhemos para conviver.

Morro no horizonte

Uma obra que desvenda os mistérios do enclave minério é “A Maquinação do Mundo” (2018), de José Miguel Wisnik. O crítico buscou o entendimento dos motivos para a angústia de Carlos Drummond de Andrade após a Segunda Guerra Mundial. Naquela época, o poeta sentiu o gosto amargo de vida. De um lado, o ideal comunista dele ruía com o conhecimento dos rumos tomados pela União Soviética. Na outra ponta, ele via os desastres causados pela mineração na sua pequena Itabira (MG).

Carlos Drummond de Andrade

A poesia encantadora dos livros “A Rosa do Povo” (1945) e de “Sentimento do Mundo” (1940) deu lugar ao inclassificável “Claro Enigma” (1951). Para muitos leitores da época, o escritor deixou a energia política engajada, próxima da realidade, para se refugiar em classicismo estético que pouca gente poderia entender. Sobretudo no poema “A máquina do mundo”. Demorou muito tempo, mas Wisnik conseguiu decifrar o diabo daquela máquina e estabeleceu a conexão Itabira-Londres-São Petersburgo.

Drummond viu a ruína do mundo e do Brasil com a destruição do Morro do Cauê itabirano. Uma montanha de minério de ferro que foi consumida e não trouxe progresso algum para o país e para a pequena cidade mineira. As explosões de dinamite para extrair o minério nos fazem lembrar da bomba atômica de Hiroshima. Restou um imenso buraco ao lado de Itabira — ou abismo onde se pode enxergar lá fundo a utopia da modernidade. Apesar disso, o poeta jamais desistiu e continuou a escrever.

A dor da juventude

Minas Gerais também gerou um grupo de rapazes desatinados, para usar a expressão de Humberto Werneck. Jovens escritores que primeiramente foram para o Rio de Janeiro e, mais adiante, desembarcaram em São Paulo. Um deles foi Fernando Sabino, que publicou seu grande livro em 1956, o mesmo ano de “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa. Época sublime na arte brasileira. O romance “O Encontro Marcado” traz a melancolia dos novos adultos, um tanto depressivos, sobre a vida nos anos 1930 e 1940.

Fernando Sabino
Fernando Sabino

Só a maturidade para entender a história de Eduardo, Mauro e Hugo. Sabino teria se inspirado nos amigos Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos para construir os personagens (Eduardo seria Fernando). A trama vai da infância ao que chamamos hoje de “jovens adultos”, entre Belo Horizonte e Rio de Janeiro. O leitor acompanha a educação sentimental dos rapazes que passavam por redações de jornais, bares, repartições, festas, prostíbulos, casamentos, cerimônias religiosas.

Na vida intensa e em que nada acontece, os amigos sentavam-se no banco da praça para “puxar angústia”. Era apenas a forma de pensar em profundidade e imaginar livros a serem escritos. Sabino mostra bem o que fazia um escritor de meados do século 20. Sujeito antenado com a arte moderna, mas que carregou as memórias de infância (caprichos, assédios às moças negras pobres). Luz do futuro e sombra do passado: pensamento avançado para uma vida acanhada, um país sem graça e nada europeu.

Clarice Lispector era a companheira de “náusea” ou de puxar angústia. Em carta de 1957, ela comentou a leitura de “O Encontro Marcado”: “Seu livro me espantou. Comecei lendo suas frases cortantes, que você por assim dizer não comenta e que parece ter a intenção de não dizer nada mais do que dizem, comecei sem saber aonde elas iriam dar. Perguntei-me de início aonde você pretendia levar o leitor e se levar. O que me espantou é que — não sei em que momento nem como — me vi inesperadamente dentro do livro”.

Homem fora do tempo

A jovem Clarice conheceu em 1941 um mineiro típico que também aportou no Rio de Janeiro. Grande decifrador do “enclave arcaico”, o escritor Lúcio Cardoso foi a pessoa que mais fascinou a autora de “Perto do Coração Selvagem”. Eles trabalhavam juntos na Agência Nacional, órgão estatal de notícias do governo Getúlio Vargas. O fascínio vinha daquele homem bonito, sensível e inteligente, que já começara a publicar seus livros impregnados de catolicismo e intimismo.

Lúcio Cardoso

A paixão de Clarice tornou-se incontrolável, ao ponto de confessar as intenções amorosas para o amigo comum Chico Barbosa. Este, porém, alertou a amiga de que haveria frustrações em sua investida: “Ele nunca vai se casar como você, ele é homossexual”. A resposta da escritora foi não menos surpreendente: “Mas eu vou salvá-lo, ele vai gostar de mim”. A anedota mostra a proximidade de dois escritores que compartilharam ideias e afetos durante a vida toda.

Usando a expressão de Fernando Sabino, eles eram mestres em “puxar angústia”. Para o leitor de hoje, a obra de Cardoso voltar a ter interesse com a nova edição de “Crônica da Casa Assassinada” (1959), republicada este ano. O livro é obra-prima da narrativa intimista da literatura brasileira. Está para surgir algo com um tom tão angustiante e introspectivo. Cardoso criou uma escrita na invenção de diários, cartas, anotações, depoimentos, para montar um conjunto de pontos de vistas diferentes.

A história da Casa Assassinada apresenta a chegada da personagem Nina à chácara da família Meneses, no interior mineiro. A mulher exuberante do Rio de Janeiro se casa com um dos filhos do clã Meneses e vai sacudir aquele mundinho. É possível imaginar o nível de loucura e desespero a que serão levados os personagens. Ao lançar seu romance mais famoso, Lúcio Cardoso expôs sua visão daquele mundo de roseiras, morros e angústias de juventude chamado Minas Gerais. 

“Meu movimento de luta, aquilo que viso destruir e incendiar pela visão de uma paisagem apocalíptica e sem remissão é Minas Gerais. Meu inimigo é Minas Gerais. O punhal que levanto, com a aprovação ou não de quem quer que seja é contra Minas Gerais. Que me entendam bem: contra a família mineira. Contra a literatura mineira. Contra o jesuitismo mineiro”, disse Cardoso, para deixar bem claro o quanto foi difícil carregar a herança do enclave mineiro pela vida afora.