O melhor filme de ficção-científica dos últimos 10 anos está no catálogo da Netflix Divulgação / Paramount Pictures

O melhor filme de ficção-científica dos últimos 10 anos está no catálogo da Netflix

Cineastas têm o costume de brincar de Deus. Denis Villeneuve é cineasta. Denis Villeneuve brinca de Deus. Tomando uma premissa como essa à guisa de argumento original, o diretor franco-canadense dá início a “A Chegada”, um trabalho denso, meticuloso, bonito do ponto de vista estético — como o bom cinema deve ser —, profundo. O filme de Villeneuve tem o condão de suscitar incontinente no público a surrada indagação sobre o que estamos (a humanidade) fazendo aqui (na Terra) sem soar piegas, ligeiro ou banal. Villeneuve — e “A Chegada” — têm um propósito.

O diretor já tinha principiado sua carreira há algum tempo, mas foi com “Incêndios”, de 2010, que de fato se fez percebido. Depois vieram os excelentes “Os Suspeitos” e “O Homem Duplicado”, em 2013, e “Sicario: Terra de Ninguém”, lançado em 2015 — o que prova sua ambição intelectual. “A Chegada”, baseado em “História da Sua Vida”, conto do escritor sino-americano Ted Chiang, publicado em 1998, se insere na categoria mais cabeça da produção villeneuviana, sem perder, que se frise, a aura de entretenimento. Ninguém precisa temer o filme, portanto.

Villeneuve não facilita a vida para o espectador, mas sempre propõe alternativas de resposta plausíveis, malgrado seus enredos primem pelo recurso do twist, da reviravolta, da virada. Em “A Chegada” não é diferente. O diretor se vale do talento de abordar os assuntos mais insólitos sem humilhar quem quer que seja com sua sofisticação nem abandonar a audiência à própria sorte ao longo da história. Muito pelo contrário: quanto mais se nos apresenta, mais cresce a vontade de continuar, até o último crédito, a fim de saber quem é responsável pelo quê numa obra-prima moderna, de uma abordagem tão refinada acerca de um assunto reproduzido infinitas vezes e, o principal, inovadora. Denis Villeneuve é solene, mas também é acessível, como seu trabalho, como a produção do genuíno artista deve ser.

Aqui, Amy Adams, em um dos papéis de sua vida, é Louise Banks, uma personagem misteriosa, complexa, problemática, na melhor acepção da palavra. Na pele de uma especialista em línguas que também ministra aulas para viver com alguma dignidade — e estamos falando dos Estados Unidos —, Adams mostra logo a que viera. Sua composição para Louise é irretocável, tanto que quem pisca num determinado frame perde muito do que se quer transmitir naquele exato ponto da narrativa. Tudo em “A Chegada” é muito sutil, e Adams é a delicadeza em pessoa, em especial ao dar vida a tipos atormentados, a exemplo do que igualmente se encontra na Anna Fox de “A Mulher na Janela”, de 2021, dirigido pelo britânico Joe Wright. Já nas sequências iniciais, se denota a angústia atávica da personagem central que, ao chegar para mais um dia de labuta no campus, demonstra certa irrequietude frente ao desinteresse dos poucos alunos presentes no anfiteatro, atendendo chamadas ao telefone sem a menor cerimônia. Logo se esclarece que um espectro qualquer ronda o ambiente, e em seguida se dá a confirmação da hecatombe que serve de plot para o filme: 12 naves vindas de outra dimensão invadiram o planeta em diferentes pontos do globo.

A professora vai para casa e a narrativa vai ganhando corpo. Não demora para que seja procurada por oficiais do Exército a fim de socorrer a humanidade, visto ser ela a mais capacitada quanto a saber o que quiseram dizer os extraterrestres na gravação obtida pelos militares — e dever alguns favores (de ordem científica, que reste claro) — ao FBI, departamento de investigações federais americano. Uma primeira aproximação é baldada, mas os homens voltam, na calada de noite, a bordo de um helicóptero potente (?!). Louise arruma suas coisas em dez minutos e decola com eles.

Partir de um raciocínio um tanto óbvio e, ao mesmo tempo, tão perigoso como o de solucionar possíveis conflitos envolvendo seres intergalácticos por meio do significado de grunhidos poderia soar clichê — e, sob dado aspecto é mesmo —, mas Villeneuve contorna a questão com galhardia. Em sua primeira incursão no sci-fi, o diretor não se deixa capturar por expectativas alheias de natureza pseudoacadêmica e começa do zero, sem receio, e é louvável sua coragem ao revisitar tema caro a gênios do calibre de George Orwell (1903-1950) e Stanley Kubrick (1928-1999), liquidificar os dois, misturá-los bem e obter um resultado homogêneo, coeso.

Louise Banks dá início a suas pesquisas a fim de desvendar quem são aquelas estranhas criaturas de sete pés — os heptápodes —, o que vieram fazer aqui embaixo e se vem em paz. Para tanto, tem de estar certa sobre se os intrusos captaram direito a mensagem, o que poderia remeter a teorias como a de Paul Lazarsfeld (1901-1976), por exemplo, mas se relaciona melhor ao literato inglês e seu conceito de novilíngua. Em “1984”, Orwell defendia que um novo paradigma linguístico se estava estabelecendo no mundo, a fim de, em subvertendo o sentido das palavras, se manter em rédea curta todos os povos da Terra por uma potência universal. O pensamento orwelliano se encaixa à perfeição aos anseios de Villeneuve: os heptápodes podem, sim, deter a hegemonia sobre toda forma de vida, afinal são tão evoluídos que nem precisam falar para se entenderem entre indivíduos de sua espécie e agora se vai clarificando que podem também ser interpretados corretamente pelos humanos, sem que tenham de mover uma palha. Conscientemente ou não, se aproveitam da ingenuidade dos terráqueos, personificados por Louise — ainda fragilizada pela morte da filha em tenra idade, outro dos “enigmas” da narrativa —, e, aos poucos, vão se revelando.

Em “2001 — Uma Odisseia no Espaço”, de 1968, Kubrick parecia ter esgotado o mote de um evento infausto que põe a perder o trabalho de astronautas no cosmo, o que se provou falso, haja vista a pletora de filmes do gênero, como “Interestelar” (2014), dirigido por Christopher Nolan, “Vida” (2017), de Daniel Espinosa, e “Estranho Passageiro — Sputnik” (2020), de Egor Abramenko, só para ficarmos em produções recentes. Ao juntar a ideia da necessidade de compreender os forasteiros de outra galáxia, outra civilização, Villeneuve suscita a importância do entendimento do problema do ponto de vista sociológico-filosófico: os aliens não são necessariamente nefandos. O homem os vê assim por comodismo puro, por não se reconhecer neles, por ter-lhes medo. O medo do desconhecido emerge, mais uma vez, na história do cinema. No que diz respeito à obra de Villeneuve, a sugestão do diretor para o enfrentamento do impasse é elementar: Louise Banks literalmente se despe do traje especial que usava, a fim de se precaver de possíveis contaminações, e se aproxima dos ETs o quanto pode, resguardada apenas por uma parede de vidro, concepção imitada descaradamente por Abramenko em “Estranho Passageiro — Sputnik”.

Em menos de duas horas de projeção, também coube em “A Chegada” a ideia da continuação da vida, numa compreensão estritamente científica. Villeneuve se utiliza dos arcos e, principalmente, dos círculos compostos por uma substância meio vaporosa, meio pulverizada, que se formam quando os heptápodes respondem às interações de Louise para inferir que a existência sobre a Terra é exatamente isso, um círculo, um ciclo, sem começo, meio ou fim, inexplicável, caótico, embora observe métodos, condição fundamental para que se mantenha a continuação das espécies. A esse propósito, conquanto mergulhe de cabeça na filosofia e, desta feita, igualmente na literatura religiosa, Villeneuve traz à luz um detalhe que decerto passaria ao largo de todos se não fosse apontado, quase didaticamente. Hannah, o nome da filha de Louise, é um palíndromo, palavra que, lida da esquerda para a direita, à moda ocidental, ou do jeito inverso, se apresenta sob a mesma constituição gráfica e fonética.

“A Chegada” é um verdadeiro ensaio imagético acerca da vulnerabilidade do homem diante do futuro, exposto a toda sorte de perigos, girando num planeta perdido num dos inestimáveis ajuntamentos de outros planetas e corpos celestes, ou seja, insignificante em meio aos mistérios da vida, tendo de se resguardar com uma das poucas armas de que é dotado: sua língua, sua cultura, sua humanidade. Tudo o mais é poeira das estrelas.