O filme da Netflix que fez as pessoas desmaiarem no cinema

O filme da Netflix que fez as pessoas desmaiarem no cinema

Adolescentes são um misto de inadequação, ansiedade, fúria, paixões, sentimentos muitas vezes regidos por hormônios descontrolados que borbulham num organismo em constante mudança. Pode parecer contraditório, mas esse não é o caso da protagonista da nova aquisição da Netflix. No suspense de terror “O Mistério de Grace”, dirigido por Jeff Chan, cuja estreia se deu no já distante 2014, Grace é uma garota comum, que, como toda garota comum, como qualquer indivíduo, tem seus questionamentos íntimos, seus problemas pessoais, seus demônios internos, sem que isso em nada lhe diminua a alegria da vida. O conflito de Grace reside num lugar muito específico de suas vivências.

Justamente por ser uma pessoa normal, Grace tem arestas a aparar com sua própria trajetória. Fora concebida em circunstâncias suspeitas por uma mãe promíscua que, ao lhe dar à luz, morre; o bebê é criado por uma avô materna muito mais interessada em expiar as possíveis iniquidades que a criança possa encarnar do que em amá-la propriamente. A natureza não dá saltos, mas o cinema é pródigo em se valer do recurso de subjugar o tempo à vontade de sua conveniência e, em sendo assim, a narrativa avança dezoito anos.

Grace está prestes a ingressar na universidade, já se transferindo, sozinha, para o alojamento do câmpus. No caminho até o quarto, observa o comportamento dos outros estudantes, alegres, eufóricos em alguns casos, muito diferentes dela. Chega à instalação que lhe é reservada e logo conhece a colega que vai compartilhar o dormitório com ela, sua antítese perfeita. Se Grace usa roupas compridas, fechadas, num caimento até deselegante de tão largo, a um passo de uma infância já encerrada, a moça está quase nua; Grace se mostra inibida e mesmo desconfortável — ainda que sempre cortês — na primeira aproximação entre as duas, imbróglio quase inexequível e agravado pela postura da outra garota que, entre e uma outra talagada de vodca, percebe a grande distância a separá-las, mas não parece interessada em colaborar e quebrar o gelo.

A festa de que os alunos participam, evento em que calouros e veteranos saudavelmente se misturam a fim de descobrir gostos em comum, preferências quanto aos mais variados assuntos, partilhar os tantos anseios que os torturam diante das dificuldades frente à nova fase da vida que se lhe descortina, é uma passagem saborosa do filme, ainda que clichê — apesar da própria situação ser um caldeirão de estereótipos. Trata-se de uma casa nos arredores da universidade, onde decerto também moram outros estudantes. Malgrado seja bastante amplo, o lugar está abarrotado de gente; Grace vai tentando entrar, conduzida por um colega que logo se afeiçoa a ela. Os dois chegam até o bar e o constrangimento se instala. Grace já provara uma cerveja antes, experiência não muito prazerosa, e é agora instada a virar uma dose de destilado. O rapaz que a acompanhava tenta dissuadi-la, mas provocada por outro, ela vai em frente. O álcool — e não a maconha — é o responsável por iniciar os mais jovens no hábito de usar drogas em caráter dito recreativo, e os desdobramentos do episódio são bem reveladores. Grace tem visões, presencia coisas que não acontecem, dá azo a vontades proibidas manifestadas apenas à luz de seu inconsciente, e vai parar no hospital. A médica que lhe presta atendimento quer saber se ela usou algum entorpecente além da bebida e se a garota tem histórico de psicopatias entre os parentes mais próximos. Grace responde com sinceridade e chega à conclusão de que talvez seja o caso de consultar um psiquiatra, mas esse e todos os muitos outros planos que traça para a nova vida que deseja levar vão ter de ficar em suspenso.

A avô de Grace volta à cena. No lendário “A Interpretação dos Sonhos”, publicado em 1900, Sigmund Freud (1856-1939) expõe suas teorias acerca do que podem representar as vidas paralelas a que damos vazão durante o sono, um tempo híbrido que amalgama vida e morte. Um dos pontos de maior iluminação dentre as muitas hipóteses geniais de Freud é o que respeita ao superego, uma entidade vinculada à nossa própria constituição psíquica ou exógena a ela, cuja função elementar é por freio aos possíveis excessos do homem. O personagem da avó incorpora o superego de Grace, verdadeiro algoz que mais do que lhe imputar penas quanto a prováveis violações de conduta, lhe tolhe o poder de iniciativa, lhe alija do livre-arbítrio. Para ela, Grace não passa de simples extensão de seu próprio corpo, postura que igualmente  aplicava à filha, morta, segundo sua visão torta acerca do mundo, por causa da protagonista. Grace fora a culpada pela morte dolorosa da mãe que, por sua vez, tivera o fim que lhe destinou a sorte devido a seus muitos pecados. O componente religioso entra em proporção maior a partir do regresso de Grace à casa da avó no interior, abordado sob a figura de dois padres experimentados e um diácono, mais jovem, a caminho da ordenação. Submetida a uma sessão de exorcismo, dois dos religiosos, ao contrário do que foram orientados no decorrer de sua extensa e sólida formação teológica, parecem se dedicar a perdurar o mal de Grace. Para eles, tentar extirpar o que torna a natureza de Grace demoníaca viria a se constituir num flagelo para a moça, uma tortura, quase uma condenação. O terceiro, um padre negro, é quem verdadeiramente se aferra a seus conhecimentos acerca da Palavra e, de acordo com o que professara o próprio fundador da Igreja a que está vinculado e exatamente por representá-lo numa situação particularmente delicada, ama a pecadora, mas abomina o que a faz tão distante de Deus. A água benta que ele lhe asperge faz efeito e a chaga que lhe consumia o espírito e se disseminara para a carne se fecha.

Em faltando cerca de dez minutos para o desfecho da trama — que resta inconclusa —, se esclarecem (ou, ao menos, se insinuam explicações) sobre a concepção de Grace, sempre com a religião por pano de fundo. Religiões, por óbvio, podem se configurar em pretextos para as piores barbáries, mas ainda são um jeito fácil, relativamente seguro e revelador — a depender do fiel, ou candidato a fiel — dos mistérios da existência. O ensaísta inglês Gilbert Keith Chesterton (1874-1936), caso raríssimo de britânico convertido publicamente ao catolicismo — um outro seria o ex-primeiro-ministro Tony Blair —, disse certa feita que, em dadas ocasiões, o que vemos nos chega ao coração sem qualquer interferência do pensamento racional. Se o mal existe, também existe a cura para esse mal. Resta ao homem querer ser curado.